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Missão cumprida

Foi logo após o dilúvio. Na organização do desembarque Noé deu privilégio àqueles mais belicosos...

Tharsis Bastos
Publicado em 06/10/2016 às 20:39Atualizado em 16/12/2022 às 17:07
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Foi logo após o dilúvio.

Na organização do desembarque Noé deu privilégio àqueles mais belicosos, visto que saindo à frente não iriam molestar os pacatos, que viriam em sequência.

Abrindo a imensa fila que se formou desde a nave, bichos perigosos como leões e ofídios ganhavam o solo ainda encharcado, e debandavam em disparada.

Com o sol já a pino iniciou-se o desembarque dos animais pacíficos. No ar uma algaravia misturando balido de ovelhas ao mugir de vacas e zurrar de jumentos. A tudo isso, somava-se o alvoroço dos pássaros que, sem necessitar de ordenamento, deixavam o imenso barco em revoadas.

Sistematicamente e com paciência, o velho tangia cada casal pela rampa, dando-lhes, após tanto tempo de borrasca, a liberdade das florestas verdes e do calor do dia.

Já ao cair da tarde, cansado e com a testa porejando, Noé conduziu à rampa o último casal a deixar a nave. Era um jovem símio e sua esposa, que denotava sinais de gravidez.

Não atino como se davam as coisas àquela época, mas o fato é que Noé se entendia com os bichos. Linguagem telepática? Não sei... Deu-se entre ele e o chimpanzé o seguinte diálog

- Mestre, agora que o céu voltou a ser claro e as águas baixaram, o que o senhor pretende fazer desta arca?

- Bem, é uma estrutura imensa que me custou meses de trabalho. Porém, agora que não navega e encravada aqui, sobre este monte, nada me resta a fazer que não abandoná-la e ir tratar da minha vida.

O macaco olhou para a imensa arca e coçou a cabeça: - É uma pena que construção tão primorosa reste aqui abandonada. Caso o senhor me autorize, adentrarei a floresta e reunirei os bichos mais fortes. Com cordas feitas de cipós talvez consigamos arrastá-la até o distante oceano.

Noé deu-lhe um tapinha nas costas: - Obrigado amigo, mas não está nos meus planos permanecer navegando. Eu mesmo preciso buscar algum sítio, onde me estabelecer com a família.

Olhou com ternura para a nave e concluiu: - Assim são as coisas. Uma vez cumprida a tarefa que lhe foi imposta neste mundo, não há mais nada que reste a fazer. Este grande barco já cumpriu sua missão. É preciso saber o tempo de cada coisa.

Existem homens que envelhecem precocemente. Antes mesmo de navegar seus mares e cumprir suas jornadas, jazem por aí, taciturnos, encravados, mascando palavras amargas e desacreditando da vida.

Alguns outros, inconformados com o escoar do tempo, insistem em recriar-se diariamente, buscando sofregamente manter um hálito da juventude que se esvaiu com os anos. Perdem-se naquela região cinza (e triste) dos que não discernem o ridículo.

Mas há os que envelhecem conscientes de seu tempo e sabedores de seu espaço. E não são nem mais e nem menos felizes por causa disso. Apenas “são”.

Alcançaram a dimensão plena da existência e assim como a arca ancorada ao cimo do monte, entendem que o incômodo da velhice e a desagradável perspectiva de ser soterrado e esquecido, jamais conseguirão sepultar a paz interior e o sentimento maior que habita em cada just o da missão cumprida!

(Achei essa notinha na internet: Um grupo de arqueólogos religiosos afirma ter descoberto o paradeiro da Arca de Noé. A equipe, formada por pesquisadores chineses e turcos, encontrou em outubro de 2008 uma estrutura de madeira enterrada no Monte Ararat, na Turquia. Baseados em relatos bíblicos, os estudiosos acreditaram ter identificado o local onde a Arca teria supostamente ancorado após o Grande Dilúvio.)

(*) Jornalista

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