O fato vai comemorar 50 anos, já sendo, portanto, de domínio público. Digo isso porque, hoje em dia, é um perigo sair contando causos alheios, tal o risco de levar um processo por danos morais.
Mas não só pelos 50 anos de ocorrido, como ter sido eu mesmo o personagem central da história, ficamos duplamente protegidos de penalidades eventuais.
O local foi aquele trecho da rua Artur Machado que hoje tem o trânsito proibido para automóveis e que chamamos Calçadão. O dia, se não me engano, uma sexta (ou um sábado) de carnaval. A hora, estimo, 7 ou 8 da noite. O ano, com certeza, 1963.
Do balcão da banca de jornais de meu avô, assistia deslumbrado ao desfilar dos foliões uberabenses. Corsos de carros gerando chuva de confetes. Serpentinas coloridas cruzando a rua. O cheiro inebriante da lança-perfume Rodoro se espalhando no ar...
Era comum naquela época, já numa incipiente ação de marketing, as empresas mais tradicionais da cidade patrocinar blocos caricatos. Não me recordo mais dos nomes "comerciais" desses blocos, com a exceção de um que jamais deixará minha lembrança: O Bloco Carnavalesco do Salão Rex.
Foi justamente nele que o bom baiano, lavador de carros, ajudante de pedreiro, vigia noturno, pau pra toda obra e torcedor fanático do USC, o Marambaia, decidiu extravasar sua euforia. Devidamente fantasiado, convenientemente abastecido, nosso folião escolheu um adereço inusitado para complementar a vestimenta: um guarda-chuva onde faltava a seda... E pendurados em cada "barbatanas" bonequinhos coloridos.
Porém, abastecido além do necessário, o pobre-diabo custava a evoluir pela rua. Dava dois passos para frente, um para trás, dois para o lado... E seguia naquela marcha tão própria dos borrachos. Atrás dele, gargalhando e soltando assovios, um imenso bando de moleques...
A tentação foi demais para meus nove anos... Saltei o balcão da banca de jornais e corri a me integrar ao grupo dos pestinhas que atazanavam a vida do pobre coitado. Volta e meia, um ou outro molecote mais taludo chutava os fundilhos do bêbado, que reagia (ou pelo menos tentava) golpeando a esmo seu impagável guarda-chuva.
O que sei a partir daí naturalmente me foi contado. Em um daqueles volteios, uma barbatana de metal veio se cravar em minha fronte, dois ou três dedos acima da orelha esquerda. Ao me ver cair redondamente no chão, o pobre folião ainda teve um gesto de desespero, puxando para trás seu adereço. Porém, o golpe foi profundo e ele não conseguiu nada além que quebrar a barbatana. Desapareceu correndo por entre a multidão e eu fiquei estirado na calçada com aquele pedaço de metal preso ao crânio.
Um jovem estudante de medicina tentou, na época, num gesto de desespero, arrancar com a mão aquele meu incômodo "acessório". Mas a resistência foi tamanha que o jovem sentiu-se mal. Passamos a ser dois desmaiados no chão. Foi um sapateiro, cujo nome evaporou-se em minha memória, que conseguiu a proeza de sacar a barbatana tão bem encravada. E gritou desesperado ao ver sair um pouco de massa cinzenta junto.
Com a ajuda de alguns populares e meus parentes aos prantos, fui colocado na ambulância do "SAMDU" e levado até o médico plantonista, Silvério Cartafina, que, verificando meu estado, fez toda a assepsia necessária e aconselhou a família buscar ajuda especializada.
Naquela época - e durante muitos anos - o papa da neurocirurgia em Uberaba era o Dr. Guerra, que, constatando a gravidade do ferimento, optou pela cirurgia, limpeza e fechamento do local. E terminou sua tarefa com um "agora é esperar", não muito animador.
Foram seis dias de muita angústia para minha pobre mãe, que via o filho naquele estado comatoso, só piorando cada vez mais. Ela não teve dúvidas: correu aos pés de Nossa Senhora da Medalha Milagrosa e garantiu à Santa que, caso eu sarasse, me faria ler diariamente - e pelo resto da vida - o Livreto da Medalha, orando todas as noites em louvor à Santa!
O meu amigo Padre Prata, que entende mais dessas coisas, certamente saberá o grau do castigo que me caberá, porque não consegui, ao longo da vida, cumprir a promessa compulsória...
Porém, muito matreiro, muito cara de pau, me agarrei com toda fé à Santinha. Além de não pagar a promessa, não dou um passo sequer sem pedir-lhe a proteção e bênçãos. Sou obrigado a acreditar que o coração de mãe é realmente maravilhoso. Se um devedor fizesse comigo o que faço com Nossa Senhora, já o teria mandado ir buscar graças e bênçãos em outra freguesia... Ou catar coquinhos lá na esquina da banca de jornais...
(*) Jornalista, escritor e publicitário