ARTICULISTAS

A casa de pedras

Vânia Maria Resende
Publicado em 30/07/2024 às 18:16
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Há anos, no trajeto de volta para casa, de carro ou a pé, passo pela Praça Comendador Quintino, conhecida em Uberaba como Praça do Grupo Brasil. Recentemente, meu senso de observação ficou aguçado, como nunca antes. Na esquina da praça com a Rua Senador Feijó, uma casa antiga, exótica, começou a me intrigar e a me habitar. Passei a vê-la como misteriosa, mais do que diferente, e a partir daí fui tomada por curiosidade sobre ela e interrogações sobre seu passado. Quando sigo nessa rua, meus olhos tentam ir além do que não alcanço, querem chegar à parte interior, flagrar morador, móvel ou movimento. Pela frente, localizada na praça, nunca vejo sinal de vida: nem entrada, nem saída de gente.

Consigo ver apenas uma faixa de grama, um pedaço de verde; parte de um jardim, talvez. O fragmento verde me causa um vislumbre primordial face ao que a casa esconde e insinua. Desejo entrar, conversar com quem vive nela e até chegar a moradores bem anteriores aos atuais. Imagino a divisão interna; a ventilação, a temperatura, a iluminação. Cresce o interesse por saber de quem foi a ideia e quem fez o projeto de uma construção diferente quanto ao padrão arquitetônico da Uberaba pequena de então. Que pedreiros deram conta desse trabalho ousado? As pedras eram da região ou de lugares distantes? As indagações surgem com o sentido novo que a casa tem pra mim. Por mais de seis décadas a desconheci, e agora, lendo Octavio Paz, entendo que é isto que ocorreu:

“Todos os dias atravessamos a mesma rua ou o mesmo jardim: todas as tardes nossos olhos batem no mesmo muro avermelhado, feito de ladrilho e tempo urbano. De repente, num dia qualquer, a rua dá para outro mundo, o jardim acaba de nascer, o muro fatigado se cobre de signos. [...] Parece que nos recordamos e quereríamos voltar para lá, para esse lugar onde as coisas são sempre assim, banhadas por uma luz antiquíssima e ao mesmo tempo acabada de nascer” (obra “O arco e a lira”, Editora Nova Fronteira, p. 161).

Informações sobre a história real da casa de pedras me alimentariam objetivamente. Porém, isso não seria suficiente para acalmar a minha mente. Não é a casa de existência concreta que me interessa; é outra, que nasce banhada pela luz aludida pelo escritor. De onde vem essa luz com um sentido ancestral poético? Emana de profundidade longínqua, se reflete no presente a partir da sintonia não só com pessoas, mas também quando se entra no âmago das coisas, na alma de tudo o que existe.

Casas onde já entrei na infância, ou outras das quais fui familiar no passado, me intrigam. Sinto vontade de voltar aonde já estive um dia. Hospedei-me muitas vezes na casa de uma amiga em São Paulo, numa rua sem saída, de região com muitas árvores e pássaros. Anos depois, ela já tinha morrido, voltei ao local, pela necessidade de revisitar a casa. Vi que a entrada na rua não era mais livre. Tinha agora a guarita e um guarda; ele me contou que o imóvel tinha sido vendido para o novo morador. Pensei que talvez nem fosse possível ver a fachada. Como pude passar pela cancela, fui até o fim da rua pequena. Vi a árvore na área externa da última casa onde eu me hospedava. Acariciei de leve o tronco e senti que algo resistira ao tempo.

Certa vez, passeando de carro em Pocinhos, Sul de Minas, vi anúncio de venda na porta de uma casa. Sonhei em comprá-la. Bati e fui atendida pelo morador, o proprietário. Pacientei, ele fez uma apresentação em detalhes. Disse-me que ela seria entregue mobiliada. Perguntei: até com aquele relógio da parede? O seu sim me fez pensar: se fosse eu, levaria comigo o objeto que carrega marcas de antiguidade, e foi fiel aos minutos, horas, dias que passei nesse espaço. Quando me mostrou o quintal, eu quis saber se ia muito passarinho ali. A essa altura, já devia estar certo de estar diante da futura moradora, a quem entregaria a chave e que o substituiria em breve.

Uma placa de venda me daria acesso à casa de pedras e lá dentro sonharia em morar nela, cuidar do jardim, ouvir passarinhos. Entrei na casa de Pocinhos sem pretensão de compra; fui levada por um desejo forte, algo oculto em mim, e por uma aventura da imaginação. Queria mesmo era ser íntima da casa que, não sei explicar o porquê, me atraiu. Desejei percorrê-la, sentir seus cômodos e, de certa forma, desvendar suas entranhas. Na obra “A poética do espaço”, Gaston Bachelard reflete que “a verificação faz morrer as imagens. Sempre, imaginar será mais que viver” (p. 254). Por outro lado, pelo contato com os objetos – as pedras, o relógio... – se toca o pulsar da vida passada e presente. Como conclui o filósofo Byung-Chul Han na obra “Não coisas”: “as coisas tornam o tempo tangível” (p. 93).

 Vânia Maria Resende

Educadora; doutora em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa

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