Existem pessoas suaves na sonoridade da fala, no toque das mãos, na fisionomia, leves no modo de caminhar. Outras são duras na expressão corporal e verbal, encrespadas no tom da voz, sempre com armas em riste. Razões psíquicas justificam contradições, reações imprevisíveis, atos falhos. Então, exasperação como tônica de certos tipos humanos pode ocultar alguma docilidade, ou ser forma de escape de medo soterrado. Armadura, a tal casca grossa, funciona como autoafirmação, defesa de insegurança. Quem usa força bruta não é forte, de fato; também, aparência frágil nem sempre é sinal de fraqueza. Com resistência e argúcia se vence sem gritaria e violência, como na história infantil “Pinote, o fracote e Janjão, o fortão”, de Fernanda Lopes de Almeida. O garoto corpulento, um caricato rei pueril, adoece e sua máscara de poderoso cai, quando não consegue dominar o pensamento livre de fracote.
O poder-dominação tipicamente machista hostiliza a delicadeza, alega que ela é negação de virilidade e própria do feminino, que ela é fraqueza, falta de potência da mulher para ação firme no mundo. A estética da grosseria acredita na impolidez como base de um mundo “forte”; adota o comportamento de ira, cinismo, deboche, arrogância autocrática, defesa e contra-ataque ácidos, vulgares; usa a mentira como verdade. Assim, o belicoso se impõe, com força bruta. A retórica dessa estética não é forma esvaziada, porta conteúdo sem compostura, contra direitos, ofensivo a grupos e indivíduos vulneráveis, difamador de certas categorias, destrutivo de patrimônios, obras, biografias, bens culturais; ela brada por bons costumes, como garantidores de moralismo repressor, preconceituoso. Compactuar-se com a performance chucra é não levar a sério respeito, educação, arte, ética, factualidade/verdade, como afirmação substancial da fineza, como bem da civilidade.
Outro é o patamar da estética da arte, de arranjos sóbrios, coesos. A sua qualidade vem do ato de conformar a criação lúdica e lucidamente, depurando excessos, para que menos possa valer mais. O ofício criativo é trabalho de ajustamento, concisão, coerência. Quem usufrui da linguagem artística se beneficia em termos terapêuticos, de burilamento da sensibilidade e complexificação da capacidade interpretativa da realidade. Enquanto a estética tosca tóxica causa lesões, deteriora e rebaixa a exigência, a estética da arte descortina ângulos transcendentes, concorre para o equilíbrio subjetivo e social, por alargar a curiosidade e a imaginação, aguçar a reflexão e a crítica, liberar sentimentos, empatia e processar identificações. Direito, Psicologia, Filosofia, Política, Educação, etc., contribuem com valor estético na concepção harmônica do conhecimento de suas áreas, se o inter-relacionar com a arte.
Pondo em questão a feiura no submundo, ela está não só na aparência, mas no desalinho do sistema de contradições e desigualdades que nem todos querem ver. Choca e desagrada a condição desumana de quem passa fome, come restos, veste e calça o que não tem a medida justa do corpo, vive amontoado e sujo na rua, mora em cubículos aos pedaços. “Parasita”, melhor filme do Oscar 2020, desnuda, no jogo cruzado entre fino e tosco, a sujeira fétida do “subsolo” que vem à tona e arruína duas famílias. A abastada que mora no alto, com visão arejada privilegiada da natureza, e a pobre, que mora no baixo da cidade e trabalha na casa chique. A condição superior de requinte material da família rica não é garantia de que esteja “limpa” de nódoa, grossura, mau cheiro; o feio se esconde atrás da fineza aparente. No “bunker” da mansão, subterrâneo simbólico, explodem ardis íntimos e conflitos sociais.
Naturalizar-se com a estética tosca é regredir no estágio de urbanidade, que não se sustenta com fineza camuflada ou cortesia formal. Fineza que alia aparência e substância é conquista contínua de desenvolvimento cultural. A forma grotesca assola os sentidos, avilta a cultura, nivelando o humano ao rasteiro. É lamentável que grosseria agressiva e ignorância arrogante tenham ganhado status de elogio da autenticidade nos últimos tempos no Brasil. Aqui, o arcaico de era remota se tornou atual, não por escolha só de ingênuos.
(*) Educadora, doutora em Estudos Comparados em Literaturas de Língua Portuguesa