ARTICULISTAS

A eternidade das coisas fugidias

Vânia Maria Resende
Publicado em 24/05/2023 às 20:37Atualizado em 24/05/2023 às 20:39
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De repente, casas reais, lembradas, imaginadas, passaram a me povoar e ganharam a forma de um inventário. Casas da literatura: “A casa dos espíritos”, de Isabel Allende, onde coabitam o realismo cru e o invisível; “Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra”, de Mia Couto, de amplo sentido simbólico; “A queda da casa de Usher”, de Allan Poe, impregnada de mistério. A casa antiga, poema de Cecília Meireles, que retrata o insólito de folhagens atravessarem paredes. Vislumbro e registro casas aéreas, em árvore; flutuantes, em barcos; sobre rodas, nas estradas. Casas da memória: das avós materna e paterna que não existem mais; da infância que revejo na leitura cúmplice da crônica “A casa materna”, de Vinícius de Moraes; de antigos vizinhos árabes: acolhedora, alegre, cheia de gente. Casarões com fantasmas e reflexos da luz da lamparina na parede. Casas abandonadas, solitárias, como as descobertas pelo grupo Caçadores do Sul (vídeos no YouTube). Casas soterradas; levadas por chuva implacável; demolidas.  

Os projetos “Onde a casa mora em nós” e “Visitando Museus” propiciam visita virtual a casas notáveis, como a dos escritores Graciliano Ramos, Érico Veríssimo e outros. Pelo primeiro projeto entrei na fascinante “Casa do Sol” e na história singular da escritora Hilda Hilst, de quem são estes versos: “A minha Casa é guardiã do meu corpo/ E protetora de todas minhas ardências”. Incluo no meu inventário casas-museus onde estive fisicamente. Museu Monteiro Lobato, em Taubaté. Museu Manuelzão, em Andrequicé, que conta a história do vaqueiro, personagem de Guimarães Rosa, e seu guia em viagem ao sertão, que deu ao escritor material para o livro “Grande sertão: veredas”. Casa de Santos Dumont, em Petrópolis, “A Encantada”, construída no alto, que guarda curiosas invenções do gênio. Na porta da casa colonial que foi de Bárbara Heliodora, em São João Del Rey, à noite, tive experiência incrível de finalizar a leitura do livro “Bárbara e Alvarenga”, de Nelson Cruz; essa ação cultural integrou um curso de Promoção de Leitura em Barroso.   

No roteiro das visitas, anoto, ainda, as casas inesquecíveis de José de Alencar, numa chácara em Fortaleza, com cajueiros e frutas à vontade; de Rubem Braga, em Cachoeiro do Itapemirim; de Jorge Amado, em Ilhéus. A Casa Velha da Ponte em Goiás, que expõe pertences de Cora Coralina pelos cômodos: xale, móveis, tachos onde ela fazia doce. No atual espaço cultural que foi hotel em Porto Alegre onde Mário Quintana viveu os últimos anos, veem-se o quarto do poeta e objetos seus, como a máquina de escrever. Em Cordisburgo, o Museu Casa Guimarães Rosa traz o ambiente da infância de Rosa, como a venda do pai, onde circulavam histórias da gente sertaneja. 

Completo a coleção com casas que ganham alma na literatura de duas escritoras. Cora Coralina conversa com seu casarão: “Teu corpo encurvado, marcado de escaras carecido de reparos que ninguém mais faz” (“Estórias da Casa Velha da Ponte”, 1987, p. 8). Cecília Meireles escreveu as crônicas Casas... e A Casa. Nesta, ela revela: “Tenho amado casas. No meu cortejo vai um vagão só de pedaços de arquitetura. E quando passo em revista a minha vida encontro as minhas dispersões em paredes embebidas de vozes, em portas e corredores com invisíveis presenças, em jardins e escadas que estão sentados comigo há imensos anos, e até em lugares onde nunca estive, mas com os quais me correspondo” (“Obra em prosa”, vol. 1, p. 211). A narradora se conecta à solidão e à morte lenta de uma casa em demolição, em frente à sua, sem presença de quem ela abrigou, sem interesse de quem transita pela rua. Mas, em sintonia, tem o olhar de quem acompanha tudo, até restar o vazio: “A casa me foi dizendo adeus pouco a pouco, e muito amorosamente. [...] Nem deixara pó que sujasse a roupa dos passantes. Mas eu, que a tinha visto e ouvido... Ah, comigo foi diferente” (idem, p. 214).

Casas têm toques, cheiros, vozes e marcas da alegria e da dor dos que as habitam. Animais brincam nas varandas. Em quintais e jardins a vida evolui em ciclo, como a de quem os cultiva. Moradores, bichos, plantas convivem e criam laços com o lugar. Pela visão do poeta, “irmão das coisas fugidias” (como Cecília se define no poema Motivo), a cronista transcende a ruína da casa eternizando-a na palavra etérea, neste desfecho: “Quando chegarmos à Eternidade, também ela estará entre as coisas sem morte, – e não terá rua nem número: será simplesmente ‘A casa’. E, por seu serviço, permanência e derrota no mundo dos homens, anjos infantes correrão por suas traves e com longas ramagens cheias de flores a adornarão” (idem). 

Vânia Maria Resende
Educadora, Doutora em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa 

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