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A primavera chega. Só porque é setembro

Vânia Maria Resende
Publicado em 16/10/2025 às 19:14
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Cecília Meireles e Adélia Prado dialogam aqui, já no título que se compõe com dois fragmentos: da crônica “Primavera” (1957), de Cecília, e do poema “Meditação à beira de um poema” (1999), de Adélia. Na lógica própria à ficção, a metáfora funciona como reserva de sentidos de projeção associativa, com base, geralmente, nas semelhanças. Na primeira camada semântica, subsiste um significado referencial, a partir do qual se estabelece a duplicidade comparativa. Primavera e florescimento são eventos naturais, e em arte têm valor metafórico, como se dá nos dois textos. Muito se pode interpretar no segundo plano dessas duas palavras, no desdobramento simbólico do ponto de partida conceitual de início, nascimento, criação, novo.    

A virtualidade de sentidos, concebida pela mente criadora e arquitetada pelo fazer criativo, é potencial de linguagem, condição vital da arte. A criação do artista não morre para tornar a nascer; a vida do objeto artístico se mantém velada, disponível no seu acervo simbólico. Quanto à literatura, em particular, ela existe a partir da significação que ganha no ato da leitura.

Há diferença entre apreciar a obra de arte, enquanto expressão da originalidade da criação humana, e contemplar a natureza, extasiar-se com belezas inexplicáveis, não produzidas culturalmente pelo ser humano. Por mais que a ciência busque explicar, não tem respostas exatas para o mistério originário. A arte cria objetos ímpares, como um universo de faz de conta. Como se referiu o crítico Roland Barthes à literatura, ela é o “trapacear com a língua”, uma “trapaça salutar”, um “logro magnífico”.

A inteligência de cada elemento da teia ecológica e da sua unidade tem vida autônoma, sábia e milagrosamente renovável. Na dinâmica regeneradora de ciclos ininterruptos de nascimento-morte-renascimento, dá-se a recorrência do princípio, da renovação da fonte matricial originária. Num processo disruptivo, a natureza rompe com barreiras ou cercos que se oponham a ela. Galhos nascem de rachadura de paredes, flores nascem do lixo, brotam do meio de pedras; sementes e raízes resistem ao inóspito e geram novos seres. O poder da regeneração vence fogo, inundação, lixo, sequidão, devastação, cimento armado. O verde surge com mais potência e viço depois de cortes e podas.

O livro “O verde brilha no poço”, de Marina Colasanti, para criança e leitor sensível de qualquer idade, narra a história de uma árvore que nasce no poço escuro, espremido no espaço de um condomínio. A terra era pouca para a semente, e mesmo assim ela brota e cresce o tronco com galhos e folhas, graças à breve faixa de luz diária, que atravessava o poço. O senso poético que dá alma à árvore a leva a se perguntar “se não seria solitária demais a vida nas colinas, vazio o tempo que corre nas campinas” (obra citada). Numa decisão humanizada, com vínculos com o lugar onde nasceu, ela escolhe ficar longe da floresta, concluindo: “Sozinha na encosta, a quem daria eu o meu carinho?” (idem).

Quanto a Cecília Meireles e Adélia Prado, os encantos da primavera (metáfora maior da vida no curso de renovação incessante), que retornam em setembro, são poetizados com admiração e reverência. A beleza passageira é maior que tudo: o ruim, o pesado, o feio, o difícil, o mesquinho:

“Minha dor nas costas,/ meu desaponto com os limites do tempo,/ o grande esforço para que me entendam/ pulverizaram-se/ diante do recorrente milagre./ Maravilhosas faziam-se/ as cíclicas perecíveis rosas./ Ninguém me demoverá/ do que de repente soube/ à margem dos edifícios da razão:/ a misericórdia está intacta, [...] nada impede ouro de corolas/ e acreditai: perfumes./ Só porque é setembro” (Adélia Prado, obra “Oráculos de maio”).

“Mas é certo que a primavera chega. É certo que a vida não se esquece, e a terra maternalmente se enfeita para as festas da sua perpetuação. [...] por fidelidade à obscura semente, ao que vem, na rotação da eternidade. Saudemos a primavera, dona da vida – e efêmera” (Cecília Meireles, “Obra em prosa”. v. 1).

“Perecíveis rosas”. “Efêmera” primavera. Duram o tempo de uma estação; às vezes, nem isso. Porém, mensageiras da eternidade; de um vestígio do sagrado; da confirmação do mistério que transcende a razão. Revelações de duas escritoras distantes no tempo, mas afinadas poeticamente: no aceno lírico e na sintonia do profundo sentido místico dos seus textos.

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