A associação entre viver e lutar ecoa na voz popular e em metáforas na arte, como na usada por Gonçalves Dias
A associação entre viver e lutar ecoa na voz popular e em metáforas na arte, como na usada por Gonçalves Dias em “Canção do Tamoio”: “a vida é luta renhida: viver é lutar. A vida é combate”. Dor e beleza que permeiam a vida compõem a síntese perfeita de um curtíssimo poema de Adélia Prado; o título “Mitigação da pena” constrói o sentido poético com mais dois versos apenas: “O céu estrelado/ vale a dor do mundo.”
Filósofos, poetas, cientistas, místicos se envolvem com o mistério da criação e transcendem, respectivamente, pelas vias ontológica (reflexão sobre o porquê da vida e do ser existencial); da criação estética; da exploração curiosa para descoberta do que é desconhecido; da experiência religiosa do divino. Einstein contraria a visão comum que se tem do cientista, ao dizer: “Em cada explorador da Natureza encontramos uma reverência religiosa” (epígrafe do livro O caldeirão azul: o universo, o homem e seu espírito, de Marcelo Gleiser, 2019). Tanto os cientistas quanto os outros mencionados se alinham ao transcendental, buscando atingir um sentido, relacionado ao inexplicável ou ao sagrado. No cotidiano, cada ser humano também tem oportunidade de tocar ou ser tocado pelo mistério e por um desvelament seja a partir de um grande motivo, como a morte, seja no encantamento despertado pelo ínfimo.
Há quem tenda para o vazio, o pessimismo, e quem, ao contrário, cultive o otimismo e a esperança. Uns são movidos por profusão de desejos e sonhos; outros se fecham, mergulhados em medo, amargura, desilusão, alienação; e tem os que se recolhem na solidão contemplativa. As duas visões paradoxais – “o desespero do niilista” e o “êxtase do místico” (expressões de Eduardo Gianetti, no livro Trópicos utópicos) – não são imutáveis, pois a dinâmica de viver e conhecer sempre mais coloca o sujeito na condição de poder reinterpretar e mudar modos de pensar e viver.
Ao longo da trajetória humana, ganha mais quem faz bom uso da liberdade e se transforma criativamente. Dar expressão afirmativa às potencialidades pessoais supõe fluir no compasso da vida, com o que se apresenta de surpresas e perigos (estes sempre lembrados por Riobaldo, no romance Grande sertã veredas: “viver é muito perigoso”). O psiquiatra Viktor E. Frankl escreveu a teoria chamada Logoterapia, com aplicação de finalidade terapêutica; ela consiste na busca de um sentido existencial (pode ser encontrado também no sofrimento, na dor, na perda). Na obra Em busca do sentido, encontra-se a base dessa teoria, construída a partir do sim do autor à vida, tendo superado aspectos trágicos. Ele sofreu violentação extrema, sobreviveu ao holocausto nazista e manteve um profundo significado humano. Saiu íntegro da situação terrificante, não destituído de sensibilidade, inteligência, espírito, dignidade, enfim. Alcançou a luz, e renasceu pelo reverso das sombras e do abismo.
No dinamismo da transitoriedade existencial, caos e sentido, negação e afirmação, morte e vida se alternam ou coexistem. Como afirmou Frankl, é preciso viver por um motivo, ou um sentido que valha a pena. Estagnar-se no vazio é forma de morte, detém a energia, destrói a potência vital. A eternidade biológica talvez nos desse mais motivo de monotonia e angústia do que a certeza da morte. É porque morremos que buscamos uma razão para viver, cultivando utopias. A utopia sinaliza o futuro com vigor criativo. A distopia, ao contrário, oprime, priva de sentido, aniquila, mata e estanca as pulsões de vida. Quanto maior a repressão sobre o sonhador, mais incontida é a utopia, e com irreverência ela encontra jeito de saltar para fora.
(*) Educadora, doutora em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa