Miguilim era só doçura. Desde bebê, cativou humanos e gatos que conviviam com ele. Com quatro meses, já tinha tamanho de um felino adulto. Suas patas eram largas, como se fossem braço ou perna de um bebê gordinho. Difícil ver outro filhote grandão assim. Recebeu o nome em homenagem ao protagonista infantil da novela Campo Geral, de Guimarães Rosa. Ele lambia com meiguice o dono da casa onde nasceu, retribuindo-lhe os mimos, sempre cheio de mansidão. Generoso, distribuía afeição, não tendo outro nome o seu modo de ser com pessoas e bichos. Tornou-se uma supermãe para cinco gatinhos que sua tutora recolheu da rua e adotou.
Com brandura, o filhotão, com apenas uns dois meses a mais que os recém-chegados, protegia os pequenos como se fossem sua prole. Quem salvou a ninhada do abandono, de verdade, foi ele, que alimentava ilusoriamente os órfãos com as tetas artificiais que esses modelaram com pelos e ficaram perfeitas. Era lindo ver os seis juntos e os cinco mamando no Miguilim, como se estivessem sugando leite mesmo. Os filhotes se sentiam confortados, aquecidos nesse acolhimento maternal e, quando não mamavam, brincavam, fazendo gato e sapato da nova mãe, esquecidos de que, um dia, foram deixados em uma caixa, na esquina de uma rua por aí.
No aconchego quentinho, os filhotes foram crescendo, e passado um tempo estavam desmamados por conta própria. Quanto a Miguilim, seu zelo lhe deu lugar soberano na casa. Um dia, livre da missão de criar os filhos adotivos, saiu para passear e nunca mais voltou. Teve lá seus motivos; penso saber quais são, mas isso fica para ser contado em outra história. Talvez tenha adotado outros órfãos que encontrou, ou se envolvido em aventuras amorosas e se tornado um paizão, agora dedicado aos próprios filhos. Para os que não eram seus, foi pai exemplar e mãe singular.
Nunca vi gato igual ao Miguilim, feito de tetas de pelos carregadinhos de amor. Gato encantador, tanto quanto o menino em sintonia profunda com o universo do sertão, onde se dá seu aprendizado inicial de dores e tristezas, espantos e alumbramentos e sua presença tem função catalisadora de pequenas histórias filtradas pela percepção poética, típica da Infância e de adultos que mantêm o senso admirativo originário. A história da cachorrinha Cuca Pingo-de-Ouro é uma delas. Embora “sempre magra”, “doente da saúde” (de acordo com a descrição do narrador), deu cria a um filhote, que vingou de uma única ninhada. Vendo mãe e filho brincarem, o menino sentia alegrias em dobro. Depois, veio desalento e mágoa quando seu pai doou, de repente e sem razão, os dois para tropeiros que passaram pelo Mutum.
A Cuca foi amarrada numa corda e o filhote levado dentro de um balaio, choramingando. Diante da cena, Miguilim “chorou de bruços”. Nunca se esqueceu da amiga; sofria por pensar que, quase cega, não teria a proteção necessária no seu novo destino. O menino reprova a doação da Cuca e atitudes como esta: “mas por que é que Pai e os outros se praziam tão risonhos, doidavam, tão animados alegres, na hora de caçar atôa, de matar tatú e os outros bichinhos desvalidos? [...] tinham gostado de matar o tatu com judiação” (Manuelzão e Miguilim, 5ª ed., p. 40).
O sertão é abundante em inusitados e contradições como caos e equilíbrio, força e fúria; e rudeza, a que a ternura se contrapõe, revestindo pequenas coisas de beleza, como se vê no desvelo da galinha Pinta-Amarela por três perdizinhas que ela choca junto com seus pintinhos: “[...] A galinha pensa que elas são filhas dela, mas parece que elas sabem que não são. [...] se assanham de querer correr para o bambuzal, fogem do meio dos pintinhos irmãos. Mas a galinha larga os pintos, sai atrás delas, chamando, chamando, cisca para elas comerem os bichinhos da terra...” (idem, p. 74).
Assim como o gato afável, um dia o menino Miguilim foi embora. Partiu do Mutum para desbravar novos espaços, levado por um doutor, de passagem por ali. Tanto a história de pessoas como a de bichos têm perda, desencanto, infortúnio, misturados com alegrias vindas de renovações e surpresas. Enquanto certos animais têm reação de empatia e afabilidade, alguns indivíduos humanos, não. Dizer isso não é fazer analogia ou nivelar senciência/ consciência humana, animalização/ hominização; apenas sinaliza que há níveis distintos de inteligência nas espécies todas e diferenças individuais entre seres da mesma espécie. A natureza nos traz perplexidade, epifanias e perguntas sem resposta sobre excepcionalidades como a dos Miguilins, cuja recepção terna das boas causas do mundo transpõe a lógica.
Vânia Maria Resende
Educadora, doutora em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa