As palavras que designam casa como construção e habitação indicam diferentes realidades, inclusive socioeconômica e cultural. Bastaria citar casa-grande e senzala. Mansão, palacete, solar supõem nível privilegiado do morador; barraco, barracão, choupana, cabana supõem o oposto. Maloca (habitação coletiva indígena) na gíria e biboca remetem a esconderijo e marginalidade. Palhoça e rancho traduzem simplicidade e sossego, ausente da cidade agitada. Vivenda e chalé condizem com aconchego. Povoar a casa com afeto é ter vínculos e guardar nela segredos e memórias, seja o espaço físico modesto ou requintado. Diz Mia Couto no romance “O outro pé da sereia”: “as pessoas é que abrigam a casa, a ternura é que sustenta o tecto”.
A diversidade do perfil das construções decorre dos elementos incorporados de caráter geográfico, ambiental, cultural, ecológico, histórico, e projeta modos e hábitos de vida e tendências de época e lugar. Chama-se Arquitetura Vernacular a forma de construção que se apropria de técnicas tradicionais e materiais locais. Nessa modalidade, o estilo rudimentar – resultante de componentes nativos (exemplo: adobe, palha, capim) que atendem às necessidades do morador de condição modesta – inspira criações arquitetônicas modernas sofisticadas, como ocas no contexto urbano.
Cada obra – de palácio, palafita, taba, mocambo, a rancho e tapera – conta histórias singulares, configuradas na estrutura física e tecidas internamente na moradia. A construção retrata a relação entre o homem e a natureza; ele dá forma estética ou funcional ao que extrai da terra. O uso de sapé, pau a pique, pedra, argila, barro, madeira, bambu, taipa de pilão, etc. molda tradições regionais. Detalhes definem diferenças culturais, como no caso de bangalô e chalé. Certa vez, no Vale do Mucuri, eu soube de casas rurais da região feitas com piso de esterco. Depois disso, li sobre confecção de mobília, vaso, prato e outros objetos com cocô de vaca. Por iniciativa de um fazendeiro italiano, esse rejeito, misturado com argila, tornou-se matéria-prima (sem mau-cheiro), chamada Merdacotta; em 2015, ele criou no castelo, casa da fazenda, o Museo della Merda, projetado pelo arquiteto Cipelletti.
A arte cultiva o tema casa com frequência. Na pintura, em especial a romântica, casas integram a paisagem. Na música brasileira, “casinhas” singelas, situadas no cenário bucólico, são recorrentes, como: “Casinha pequenina” (domínio público); “Lá no pé da serra”, de Elpídio dos Santos; “Casa no campo”, de Zé Rodrix e Tavito; “Casinha branca”, de Gílson V. da Silva e Joran F. da Silva. Sobre a simplicidade observada em casas de gravuras, Gaston Bachelard conclui o seguinte: “quanto mais simples é a casa gravada, mais ela trabalha minha imaginação de habitante. [...] O abrigo é fortificante. Quer ser habitada simplesmente, com a grande segurança que a simplicidade dá” (“A poética do espaço”/ “Os pensadores”, 1984, p. 230).
Cora Coralina deixou a casa da sua infância em Goiás Velho, na juventude, ao fugir com quem se tornaria seu marido. Morou muitos anos em cidades paulistas e, na maturidade, viúva, voltou para o casarão onde viveria tempo fértil de produção literária. De valor imemorial, rica de histórias, a casa antiga, morada da escritora até sua morte, é exaltada em poemas, crônicas, contos, como no “Casa Velha da Ponte”: “Algum dia cerimonial foste casa nova, num tempo perdido do passado, quando mãos escravas te levantaram em pedra, madeirame e barro. [...] O capim-musgo viça e cresce nos beirais encachoeirados; celebra em cada advento tua veneranda idade [...]. CASA VELHA DA PONTE, és para o meu cântico ancestral uma bênção madrinha do passado” (obra “Estórias da Casa Velha da Ponte”, 1985, p. 7-11). Outro conto, “O tesouro da Casa Velha”, é parte e título da obra póstuma de 1989.
Nos últimos anos, tragédias se repetem no Brasil por causa de chuvas fortes, afetando sobretudo a população desprovida de recursos. São muitas ocorrências, como de fevereiro de 2023 no litoral norte paulista, onde casas de encostas foram inundadas e soterradas com o que habitava no entorno e dentro, até pessoas. Demolição de uma casa pode causar nostalgia, mas parte da decisão do proprietário. Desmoronamento surpreende, violenta e mata; desenraiza, expulsa os seres humanos do seu abrigo, tira as referências dos sobreviventes. Privados do ambiente de intimidade e descanso; em moradas improvisadas; miséria agravada, como verem sentido no caos? Talvez, o orgulho inalienável de terem realizado o sonho da casa própria. Talvez, os afetos latentes para cultivarem em outra casa incerta.
Vânia Maria Resende
Educadora, Doutora em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa