O conhecimento questionador e a sabedoria extirpam o medo e o encolhimento produzidos por falsos anúncios tenebrosos. Não é contraditório que um materialista ou ateu clarividente tenha canais de espiritualidade (não restrita a religião). Acreditar no limite da vida terrena não o impede de vivê-la animado por virtude, fé, sentimentos positivos, ideal, e transcender (que não é se alienar, mas se elevar acima do superficial). Esses balizadores de energia espiritual são clarões internos da inteligência e da emoção em movimento de expansão libertadora. As elaborações profundas passam do abstrato a ação qualificada, equânime, motriz do bem-estar pessoal e social. O indivíduo ou uma comunidade prisioneira de ameaça apocalíptica – submersos na penumbra de pecado e censura genéricos, pavor do castigo, obediência e penitência cegas – dissociam-se do sagrado. Situam-se no estágio de entendimento literal (ao pé da letra) do pensamento concreto, por isso sua noção de salvação é descontextualizada da vida em mutação e do centro do eu. Reflexão e conhecimento crítico de si e do outro jogam luz sobre sombras reais (defeito, erro, culpa, julgamento), emancipam e transformam.
A pandemia de 2020 e catástrofes de outros momentos são terreno propício a propagação de mensagens obscuras que anunciam o fim dos tempos e assombram com o temor de condenação e punição com fogo eterno, por uma dívida fantasmática coletiva. Outro dia, uma pessoa graduada, de mais de 70 anos, me disse que tem em casa estoque de água e vela, para passar os 3 dias e 3 noites de trevas que estão por vir, segundo a profecia de Santo Padre Pio que circula em rede social e internet, e é utilizada até em pregação apelativa, supostamente evangelizadora. Consta do seu conteúdo punitivo inquisitorial e pueril a oração de joelhos, como penitência, nos dias de falta e escuridão. Há mais de 2000 anos, Cristo deu testemunho de verdade e vida em abundância; insurgiu contra o poder opressor e farisaico imposto com lei e ritual vazios; revelou a face terna, amorosa, compassiva do Pai, não mais distante e vingativo; iluminou o entendimento de que o humano pode ser habitado pelo divino e, assim, o Reino se cumprir dentro de cada um e entre os homens. Contudo, ainda há quem pregue e quem acredite em narrativas sombrias, maniqueístas que acorrentam e oprimem a mente e o espírito.
No seu estudo sobre a literatura fantástica, a escritora francesa Jacqueline Held considera que, quando falta ao imaginário infantil alimento mágico de qualidade, o adulto se satisfará com fantasia precária. A função primordial da literatura, tanto a infantil, quanto a adulta, não é edificante, mas lúdica, prazerosa, polêmica, irreverente; por isso, libertadora. Pensemos no romance “Ensaio sobre a cegueira”, de José Saramago, cuja temática apocalíptica versa sobre a epidemia da cegueira repentina que atinge toda uma população e a envolve em caos e pavor. As pessoas sobrevivem sob condições deprimentes, niveladas por relações inescrupulosas, em que “salva-se quem puder”. Apenas uma mulher de condição diferenciada – sensível, lúcida e ética – não perde a vidência; ver, no seu caso, tem sentido real e simbólico, já que ela é luz e guia na passagem para uma nova percepção.
Nessa obra, o fator escatológico demole, detona conflitos, contém crítica à deterioração de estruturas sociais em convulsão. O cenário surreal da epidemia enseja tomada de consciência profunda da realidade e possibilidade de reconstrução social com o retorno da visão. Associando-se inferno, purgatório e céu a condições e modos de vida terrenos, bem e mal estão em condutas e sistemas de empenho construtivo ou destrutivo; são passíveis de reformulação e reorientação, dependendo da resolução humana, não de força mágica e solução simplista, como da fórmula premiar o bom e castigar o mau.
É normal que algo novo venha no lugar do que se torna insustentável. Tomara que a derrocada da Covid-19 e de outros dramas cotidianos leve à inflexão para o desatar de nós paralisantes da morte, que é amplamente tudo que viola a vitalidade, tripudia sobre ela. A pandemia criou o cenário funesto de insegurança, instabilidade, isolamento, perda, sofrimento inesperados. O que serviu de contrapeso – senso da realidade; arte, afeto; empatia, união coletiva, fé; ciência, informação confiável, tempo de interiorização, reflexão, ócio criativo, memória – é referencial de conversão saneadora.
Vânia Maria Resende
Educadora, doutora em Estudos Comparados em Literaturas de Língua Portuguesa