ARTICULISTAS

Censura à literatura é ato repressor e antieducativo

Vânia Maria Resende
Publicado em 15/07/2024 às 18:19
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A literatura se sustenta com a novidade, produzida pela sua condição fantástica que resvala por modulações poética, humorística, absurda, mágica. Essa condição transporta conotações autorreferentes, não factuais. A criação tem vida própria, com densidade metafórica ou condensação de sentidos plurais; não se define como realismo concreto, literal. É inconsistente esteticamente o padrão ficcional e poético que tende ou para reprodução fotográfica da realidade conhecida, ou para fantasia de feitio pueril. Transparência, em lugar de sutileza e de dubiedade, subtrai da literatura a voltagem de criatividade definidora da arte. Seja por se inspirar na realidade objetiva e reduzi-la a expressão explícita, seja, inversamente, pelo uso de conteúdo inverossímil alienante propício a escape de si e ruptura com o tempo, essas tendências perdem complexidade imaginativa e seiva lúdica.

A arte literária opera com transfigurações. Não importa o gênero; se o tema é extraído da realidade ou não; se a personagem é ser humano ou personificação. Na esfera da fantasia, as revelações são de teor subliminar. Sob o prisma da imaginação, o escritor opera esteticamente com ineditismo da forma e do tratamento de todos os aspectos da sua criação; sendo assim, no arcabouço criativo não cabe o absoluto, o convencional, limites razoáveis. O que a linguagem da arte acampa como novo não se traduz como informação referencial; figura nas entrelinhas com possibilidade insurgente de sentir, ver, pensar e desconstruir chichê, preconceito, ideias cristalizadas.

Ler literatura valiosa faz sonhar, desperta especulações sutis, dá o prazer da fruição, que é ter sensações surpreendentes que vão do enlevo da beleza poética à irreverência do humor. A experiência livre com o texto se vive com sensibilidade e pensamento criativo, sem expectativa engessada, fins interesseiros e juízo rasteiro; sem medo de censura a si mesmo e ao que se lê. Quanto ao gosto fixado em repertório realista ou em fantasia alienante, fica estagnado na preferência viciosa e mantém o senso crítico imaturo. Com visão simplória que confunde fantasia e fato concreto, o ingênuo pode correr de medo de que a chuva torrencial de uma cena do filme inunde o cinema.

O que se passa no universo literário simbólico não é cópia de planos externos; não tem correspondência denotativa ou especular com o que é verdadeiro. Jacqueline Held considera que o poético ou fantástico “instaura a margem do outro lugar” (onde reina a virtualidade); e afirma: “quem quiser dar à criança conhecimentos prontos e acabados, imediatamente mensuráveis, irá espontaneamente ao livro documentário e realista. Esse [...] é mais facilmente, mais evidentemente didático. Numa perspectiva de instrução a curto prazo, ele satisfaz porque ‘edifica’ e porque ‘informa’” (obra “O imaginário no poder”, Summus, p. 204 e p. 234).  

A leitura de uma obra literária rica processa transformações subjetivas, quando, talvez, um nó emocional se desamarre, uma questão social ou existencial se ilumine, alguma tensão interna ou externa se mova, se canalize, etc. Ela gera elaborações; identificação e repúdio; revolvimento de afetos, memórias, desejos; inquietação e indagações. Porém, não leva o leitor adulto ou infantil em situação normal a perder prumo e rumo. Vários aspectos influem na mente e no psiquismo humano em todas as idades; não é o fator estético isolado que detonaria perversão, desequilíbrio, caos mental.

Em espaços de promoção da leitura, como lar e escola, a mediação entre leitor-livro pressupõe que o adulto compartilhe leituras, tendo diálogo satisfatório com a criança e visão arejada sobre o que leem juntos; que ele a ouça, discuta dúvidas, esclareça o necessário. Sem que se faça disso pretexto para ensinar conteúdo, incutir valores, forçar moralidade, em prejuízo do potencial libertador (implicitamente educativo) de obras de valor.

Censurar livro é ato opressor, antidemocrático, retrocesso inquisitorial, e tem ocorrido no Brasil. Em junho deste ano, a Prefeitura de Conselheiro Lafaiete suspendeu atividades com “O Menino Marrom”, de Ziraldo, nas escolas. Seria atribuição da Secretaria de Educação sustentar o que estava programado, promovendo análise literária da obra e discussão elucidativa com educadores e famílias, com o apoio de profissionais de Literatura e Psicologia. A função emancipadora da educação implicaria o órgão justificar a beleza e a qualidade do livro; dissipar equívocos e preocupações de alguns pais e suas críticas contra ele; garantir o direito de leitura pelas crianças.

 Vânia Maria Resende

Educadora; Doutora em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa

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