ARTICULISTAS

Conexão entre a vida e a magia da arte

Vânia Maria Resende
Publicado em 26/08/2023 às 18:51
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Uma beleza a apresentação literária, musical e teatral de “Pedro e o Lobo”, obra infantil adaptada pelo grupo Giramundo, acompanhado pela Orquestra Jovem de Belo Horizonte, no dia 19 de agosto, em Uberaba. Gratificante ver o Teatro Sesiminas lotado de criança e adulto, próximos pelo afeto e a fantasia, que os colocaram no mesmo patamar de recepção e prazer. Contagiantes a alegria e a vibração das crianças na interação com as personagens, num momento de diversão, arte, cultura propício à educação indireta no processo formativo infantil. Louvável o interesse de quem levou filho, neto, sobrinho para desfrutarem de rica experiência estética. Independentes de idade, as pessoas mergulharam no absurdo, inerente à realidade fantástica, urdida com poesia, humor ingênuo, ternura e singeleza.

A obra original “Pedro e o Lobo” foi escrita em 1936 pelo famoso compositor Sergei Prokofiev (nascido em Sontsovka - Rússia, hoje Krasne - Ucrânia). Como era compositor, criou a história sincronizada com a música: cada personagem se associa a alguns instrumentos da orquestra e a uma melodia. Na adaptação do grupo Giramundo, Pedro (protagonista), o avô, o lobo, o pato, o passarinho, o gato e os caçadores são conduzidos por três marionetistas/atores divertidos, com características de palhaço. Maquetes simples, de fachada de frente para o público, sobre caixas aparentemente de madeira, compõem o cenário: a floresta; uma árvore; a casa do Pedro e seu avô; um jardim; a pedreira onde o lobo costuma aparecer.

“Pedro e o Lobo” é um clássico, com adaptações através dos anos em vários países. De caráter musical e literário, foi considerado pelo seu criador “uma das minhas peças orquestrais”, segundo depoimento citado por Sandra Valenzuela no estudo “Pedro e o Lobo, de Prokofiev: a música como ilustração do conto”. Para Sandra, a obra é um conto sinfônico. Entre gravações brasileiras disponíveis na internet, estão a de 1970, de Roberto Carlos, acompanhado pela Filarmônica de Nova York, regida por Leonard Bernstein, e a de 1989, de Rita Lee, acompanhada pela Orquestra Nova Sinfonieta, regida por Roberto Tibiriçá, na produção de Roberto de Carvalho.

Adaptações introduzem elementos novos em textos clássicos e os modificam em algum aspecto. “Pedro e o Lobo” se insere na linhagem do gênero maravilhoso e incorpora resquícios da versão alemã de “Chapeuzinho Vermelho” (incluída entre os contos reunidos pelos irmãos Grimm, publicados em 1812). Esse conto mexe com a emoção infantil devido à tensão vivida pela criança, no desafio de se confrontar com o lobo mau.

Prokofiev retoma o conflito básico da fonte originária alemã e faz as seguintes mudanças. Quem é engolido pelo lobo é o pato, substituto da avó e de Chapeuzinho. Pedro impede que os caçadores atirem; luta como herói com o lobo, que não morre, mas é conduzido ao zoológico. O pato não é retirado da barriga do lobo, como aconteceu com a avó e a neta. Embora ele não reapareça em cena, a narração noticia o fato de que está vivo, mexendo dentro do lobo. A questão da morte é revestida de certa ambiguidade, numa abordagem permeada de esperança, o que é recomendável a obras infantis.

Viver sem humor e poesia se torna automatismo artificial, condição que reprime a essência humana livre, espontânea, criativa. A fruição estética incita a magia de planos imaginativos, dá vazão à energia afirmativa de vida em qualquer idade. Quanto à criança menor, o conhecimento do mundo passa naturalmente pelo pensamento mágico. A arte infantil de qualidade propicia deleite e reflexão ao adulto também; ao remexer emoções, fantasias e memórias, aciona os conteúdos mágicos da Infância. Esses definem o valor simbólico do arquétipo da Criança (de Jung); não têm referencial etário. Visões múltiplas, relativas do imaginário levam a mente a refugar o raciocínio raso e o psiquismo a equilibrar dualidades, descartando dissociações.

É intrigante alguém se dispor a levar uma criança entre 2 e 3 anos para ver “Pedro e o Lobo” e não fazer nada para afastá-la da alienação virtual. Parece ser caso isolado o que vi em meio a uma plateia em interação visível com a peça: bem ao meu lado, um menino, no colo da mãe, ligado ao celular e desligado do mundo mágico da história. A mãe se ligou à peça depois que o celular ficou com ele até o final da apresentação; não fez nada para sintonizá-lo com o que acontecia ao vivo e a cores, nenhuma palavra ou gesto. Na virtualidade, a criança ficou vagando ou navegando, desterritorializada, sozinha. Se não houvesse cisão entre mãe e filho e com a realidade, os dois teriam levado algo novo em si, para casa e para o mundo.

 Vânia Maria Resende

Educadora, doutora em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa

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