Este artigo estava pronto, quando me deparei com o texto “O duelo entre a vida e a morte”, de Leonardo Boff, de 21/4/2011. Em análise lúcida, ele diz: “Analistas da pegada ecológica global da Terra, devido à conjunção das muitas crises existentes, nos advertem que poderemos conhecer, para tempos não muito distantes, tragédias ecológico-humanitárias de extrema gravidade”. Resolvi manter o meu título, ressaltando a coincidência e a previsão de Boff.
O invisível coronavírus se tornou palpável, tanto nos corpos infectados, como na ameaça, no medo, nas restrições impostas. Uns mais que outros, mas todos se sentiram vulneráveis, e isso talvez lhes tenha despertado empatia com quem sofre diversos males e agruras dentro e fora do Brasil, não só por causa do vírus que mata tanto quanto uma guerra, ou mais. O confinamento inviável para moradores de rua e de casas precárias escancarou a desigualdade e a miséria no Brasil, com deficiência de alimentação, moradia, segurança, saneamento, atendimento sanitário – causadora de infecção e de mortalidade cotidianas, com o risco acentuado, agora, pelo vírus.
A Covid-19 deu uma guinada no modo habitual de pensar e agir. A nova realidade desafiou a capacidade de reagir, criar, solidarizar, superar e contornar o que parece incontornável. Até mesmo a ciência se viu impotente diante do desconhecido. A angústia emergiu na comunidade mundial com a percepção do valor da vida, da gravidade da morte e de quanto é frágil e imprevisível a condição existencial. O distanciamento social redimensionou a importância da afetividade que humaniza as relações. A desaceleração de compromissos favoreceu o encontro consigo mesmo e o olhar atencioso sobre o outro e as pequenas coisas. Nesse contexto, a arte mostrou o outro lado, de beleza e alegria, em sacada, janela, rua, no interior das casas; a potência lúdica possibilitou reinventar a vida e movimentar o mundo dentro de cada um.
Quando o drama vivido por milhões de pessoas, mostrado em imagens, notícias, depoimentos, inspira respeito e compaixão, a dor coletiva se torna suportável e emoções contraditórias passam a ser compartilhadas pela comunidade mundial. Desespero, pela espera de vaga na UTI e pesar pela morte de quem não conseguiu. Aflição, face ao isolamento dos doentes, solitários no leito até a cura ou a morte, e tristeza, pelo luto não poder ser vivido como deveria. Perturbação e desacordo com escolha inadmissível de quem morreria por não ter respirador disponível; dúvidas: a falta de vagas era também em hospitais particulares?, quantas pessoas morrem no dia a dia por falta de atendimento para os seus males? O alento que sustentou a dor veio de homenagens, aplausos, música... pela cura e pelo reconhecimento à dedicação de profissionais da saúde e todos empenhados na luta pela vida.
Houve quem festejasse a morte. O que está por trás disso? Cenas perversas e lamentáveis ocuparam o espaço público, compondo espetáculo macabro de danças e encenações com caixão, carreata com buzinaço frente a hospitais, derrubada de cruzes em memória dos mortos, agressões a profissionais da saúde e a quem perdeu familiares. O psicanalista Christian Dunker (em entrevista ao canal DCM TV) identificou nos envolvidos nas manifestações a “irrelevância da vida”, baixo nível de satisfação e prazer (com a vida). Por isso, banalizam vida e morte. Para a morte do outro, vale “antes ele do que eu”, e sentem a sua própria vida também insignificante diante do líder redentor. Esses manifestantes se anunciaram defensores da Pátria e a desonraram na ação destrutiva; usaram o nome de Deus em mensagens malignas; reivindicaram liberdade passando por cima do respeito ao outro; se apresentaram como portadores da verdade na expressão de visões delirantes.
O saudável desejo de viver desafia pulsões de morte. A vida humana é bem supremo, que dura quando cuidada; para alguns, é interrompida por falta de recursos. Em “Morte e Vida Severina”, Mestre Carpina, mesmo forjado na dureza do sertão, é afirmativo, o que se confirma no que diz a Severin “Muita diferença faz/ entre lutar com as mãos/ e abandoná-las para trás/ porque ao menos esse mar/ não pode adiantar-se mais”; no clímax do auto de natal, o nascimento do seu filho desvia o jovem retirante da intenção de se matar. Em “Grande Sertã Veredas”, Riobaldo exalta a vida quando entra no rancho pobre, em noite de luar simbólico, onde acabou de nascer uma criança. Oferta dinheiro à mãe para ajudar na sobrevivência e se expressa em tom auspicioso, sagrad “Minha Senhora Dona: um menino nasceu – o mundo tornou a começar!...”. O novo vírus impactou a Terra, espalhou a morte em resposta a um desequilíbrio; não é mal gratuito, se soma a outros em duelo com a vida.
Vânia Maria Resende
Educadora, doutora em Estudos Comparados em Literaturas de Língua Portuguesa