ARTICULISTAS

Duelo entre vida e morte

Vânia Maria Resende
Publicado em 14/08/2020 às 17:36Atualizado em 18/12/2022 às 08:45
Compartilhar

Este artigo estava pronto, quando me deparei com o texto “O duelo entre a vida e a morte”, de Leonardo Boff, de 21/4/2011. Em análise lúcida, ele diz: “Analistas da pegada ecológica global da Terra, devido à conjunção das muitas crises existentes, nos advertem que poderemos conhecer, para tempos não muito distantes, tragédias ecológico-humanitárias de extrema gravidade”. Resolvi manter o meu título, ressaltando a coincidência e a previsão de Boff. 

O invisível coronavírus se tornou palpável, tanto nos corpos infectados, como na ameaça, no medo, nas restrições impostas. Uns mais que outros, mas todos se sentiram vulneráveis, e isso talvez lhes tenha despertado empatia com quem sofre diversos males e agruras dentro e fora do Brasil, não só por causa do vírus que mata tanto quanto uma guerra, ou mais. O confinamento inviável para moradores de rua e de casas precárias escancarou a desigualdade e a miséria no Brasil, com deficiência de alimentação, moradia, segurança, saneamento, atendimento sanitário – causadora de infecção e de mortalidade cotidianas, com o risco acentuado, agora, pelo vírus.

A Covid-19 deu uma guinada no modo habitual de pensar e agir. A nova realidade desafiou a capacidade de reagir, criar, solidarizar, superar e contornar o que parece incontornável. Até mesmo a ciência se viu impotente diante do desconhecido. A angústia emergiu na comunidade mundial com a percepção do valor da vida, da gravidade da morte e de quanto é frágil e imprevisível a condição existencial. O distanciamento social redimensionou a importância da afetividade que humaniza as relações. A desaceleração de compromissos favoreceu o encontro consigo mesmo e o olhar atencioso sobre o outro e as pequenas coisas. Nesse contexto, a arte mostrou o outro lado, de beleza e alegria, em sacada, janela, rua, no interior das casas; a potência lúdica possibilitou reinventar a vida e movimentar o mundo dentro de cada um.   

Quando o drama vivido por milhões de pessoas, mostrado em imagens, notícias, depoimentos, inspira respeito e compaixão, a dor coletiva se torna suportável e emoções contraditórias passam a ser compartilhadas pela comunidade mundial. Desespero, pela espera de vaga na UTI e pesar pela morte de quem não conseguiu. Aflição, face ao isolamento dos doentes, solitários no leito até a cura ou a morte, e tristeza, pelo luto não poder ser vivido como deveria. Perturbação e desacordo com escolha inadmissível de quem morreria por não ter respirador disponível; dúvidas: a falta de vagas era também em hospitais particulares?, quantas pessoas morrem no dia a dia por falta de atendimento para os seus males? O alento que sustentou a dor veio de homenagens, aplausos, música... pela cura e pelo reconhecimento à dedicação de profissionais da saúde e todos empenhados na luta pela vida.

Houve quem festejasse a morte. O que está por trás disso? Cenas perversas e lamentáveis ocuparam o espaço público, compondo espetáculo macabro de danças e encenações com caixão, carreata com buzinaço frente a hospitais, derrubada de cruzes em memória dos mortos, agressões a profissionais da saúde e a quem perdeu familiares. O psicanalista Christian Dunker (em entrevista ao canal DCM TV) identificou nos envolvidos nas manifestações a “irrelevância da vida”, baixo nível de satisfação e prazer (com a vida). Por isso, banalizam vida e morte. Para a morte do outro, vale “antes ele do que eu”, e sentem a sua própria vida também insignificante diante do líder redentor. Esses manifestantes se anunciaram defensores da Pátria e a desonraram na ação destrutiva; usaram o nome de Deus em mensagens malignas; reivindicaram liberdade passando por cima do respeito ao outro; se apresentaram como portadores da verdade na expressão de visões delirantes.

O saudável desejo de viver desafia pulsões de morte. A vida humana é bem supremo, que dura quando cuidada; para alguns, é interrompida por falta de recursos. Em “Morte e Vida Severina”, Mestre Carpina, mesmo forjado na dureza do sertão, é afirmativo, o que se confirma no que diz a Severin “Muita diferença faz/ entre lutar com as mãos/ e abandoná-las para trás/ porque ao menos esse mar/ não pode adiantar-se mais”; no clímax do auto de natal, o nascimento do seu filho desvia o jovem retirante da intenção de se matar. Em “Grande Sertã Veredas”, Riobaldo exalta a vida quando entra no rancho pobre, em noite de luar simbólico, onde acabou de nascer uma criança. Oferta dinheiro à mãe para ajudar na sobrevivência e se expressa em tom auspicioso, sagrad “Minha Senhora Dona: um menino nasceu – o mundo tornou a começar!...”. O novo vírus impactou a Terra, espalhou a morte em resposta a um desequilíbrio; não é mal gratuito, se soma a outros em duelo com a vida.

Vânia Maria Resende 

Educadora, doutora em Estudos Comparados em Literaturas de Língua Portuguesa

Assuntos Relacionados
Compartilhar
Logotipo JM OnlineLogotipo JM Online

Nossos Apps

Redes Sociais

Razão Social

Rio Grande Artes Gráficas Ltda

CNPJ: 17.771.076/0001-83

Logotipo JM Magazine
Logotipo JM Online
Logotipo JM Online
Logotipo JM Rádio
Logotipo Editoria & Gráfica Vitória
JM Online© Copyright 2024Todos os direitos reservados.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por