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Guerra contra duas mangueiras

Vânia Maria Resende
Publicado em 12/07/2023 às 18:35
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Uma casa antiga na cidade, sem moradores, tem no seu quintal duas mangueiras. Foram plantadas pela proprietária, falecida há mais de uma década. Férteis, dão vida ao local. Das lindas pencas carregadinhas de manga-sabina, algumas são comidas no pé, por animais, ou caem com o vento e a chuva; as outras são colhidas e distribuídas. Assim é todo ano. Companheiras, cresceram junto, uma ao lado da outra. Hoje, são guardiãs silenciosas da casa vazia, como duas árvores da crônica “O cajueiro”, de Rubem Braga. Investigação científica sobre a comunicação no reino vegetal sinaliza que há conexão entre as raízes, o que cria defesa e fortalecimento mútuo entre as plantas. Isso prova que elas são seres reativos, em movimento e desenvolvimento.

Em 1880, Darwin publicou o livro “O poder do movimento nas plantas”. Em 1848, havia sido editado este outro: “Nanna, ou sobre a vida psíquica das plantas”, de Gustav T. Fechner; como a tradução brasileira é inacessível, resta a curiosidade sobre o enfoque instigante que o título sugere. É possível ler citação sobre ela em “A vida secreta das plantas” (1973), dos autores Peter Tompkins e Christopher Bird. Essa obra despertou polêmica e restrições naqueles cientistas que julgavam esotéricas experiências relatadas, como a da sensibilidade das plantas à música. A Ciência, aberta a descobertas, às vezes muda a visão sobre o que antes negava como real.

Religiões usam em chá, benzeção, banho e ritual, com valor sagrado e curativo, raiz, semente, ramo, casca, folha. Estudos comprovam o uso medicinal da ayahuasca e da Cannabis. A natureza vegetal é exuberante e fecunda; contribui com o equilíbrio ecológico, ar puro, matéria-prima para remédio e construção de objetos, alimento, beleza. As árvores são admiráveis, cada uma com sua identidade: franzina ou robusta; soberba ou humilde; exasperada ou calma; desalinhada ou elegante. As mangueiras protagonistas deste artigo são generosas; ainda que não contem com atenção e convívio dos herdeiros da casa, oferece-lhes, quando aparecem, frutas, sombra, ar saudável e quietude no seu entorno, para um bom descanso. Suas folhas forram o chão e adubam o solo num processo cíclico.

No quintal paralelo ao das mangueiras, mora uma vizinha beligerante, insensível a canto de galo, ar puro, delícia das frutas, sombra. Ela decretou guerra com as duas árvores por causa das folhas que caem e das raízes, nas quais pôs culpa por rachaduras no barracão do seu terreno. Antes desse embate, já havia investido contra outra árvore e um galo da redondeza. Armada contra o novo alvo, solicitou o corte à Secretaria do Meio-Ambiente, mas não conseguiu. Dois pareceres constataram que as raízes não causavam danos – do órgão municipal e do perito ambiental judicial contratado por proprietárias da casa, que lutaram pelas mangueiras.

Árvores são fonte primordial de vida na Terra. Espécies gigantes, como da Floresta Amazônica, são notáveis na sua potência de mais de 80 metros de altura. Notável também é a resistência das que têm vida longa, como o baobá, a figueira, o carvalho. Há registro, em 2009, no site journals.plos.org/plosone/article, do fenomenal Quercus palmeri. É um carvalho americano de 13.000 anos, descrito como uma “comunidade” de arbustos clonados que conseguiu superar condições climáticas extremas por regeneração, desde a Era do Gelo (informações extraídas do site oglobo.globo.com/saude/ciencia/carvalho-americano-de-13-mil-anos-de-idade-o-ser-vivo-mais-velho-do-mundo). Vale registrar outro fenômeno, o cajueiro brasileiro plantado em 1888 no município de Parnamirim, a 12 quilômetros de Natal; reconhecido pelo “Guiness Book”, em 1994, como o maior do mundo.   

Na crônica de Rubem Braga citada no início, o cronista humaniza duas árvores, atribuindo-lhes perfil virtuoso: “Lembro-me da tamareira, e de tantos arbustos e folhagens coloridas, lembro-me da parreira que cobria o caramanchão, e dos canteiros de flores humildes, ‘beijos’, violetas. Tudo sumira; mas o grande pé de fruta-pão ao lado de casa e o imenso cajueiro lá no alto eram como árvores sagradas protegendo a família” (“Casa dos Braga – Memória de infância”. Record, 1997, p. 65). Fiel até na morte – é assim que o cronista vê o cajueiro. E sob esse prisma finaliza a narrativa: “A carta de minha irmã mais moça diz que ele caiu numa tarde de ventania, num fragor tremendo pela ribanceira; e caiu meio de lado, como se não quisesse quebrar o telhado de nossa velha casa. [...] Foi agora, em fins de setembro. Estava carregado de flores” (idem, p. 66).

Vânia Maria Resende
Educadora, Doutora em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa

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