ARTICULISTAS

Imitação ou singularidade

Vânia Maria Resende
Publicado em 10/12/2018 às 06:43Atualizado em 17/12/2022 às 16:16
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O conflito da personagem Hamlet (da peça de Shakespeare, escrita há mais de 400 anos), expresso na questão “ser ou não ser”, faz parte da condição humana. São variáveis apenas os fatores históricos e sociais que interferem na angústia do ser, com mais ou com menos intensidade. No caso ficcional, a crise interior implica o desacordo do príncipe com as venenosas intrigas do reino da Dinamarca. Ele é irredutível no pacto com a verdade; não se corrompe com os esquemas medíocres do mundo da realeza: trair, matar, roubar, apropriar-se de algo ou alguém, por falta de ética, deteriorar-se, em função do poder sem escrúpulo. Sendo verdadeiro, combate a hipocrisia; é abatido, por um lado, e vencedor, por outro, por manter-se íntegro. 

Convém salientar que bem e mal não funcionam em oposição maniqueísta simplificadora. Relativizam-se e tensionam-se, entre variáveis complexas que muitas vezes geram dúvidas e incertezas entre certo e errado, verdade e mentira, ter e ser. Esses pares envolvem valores, sujeitos a discernimento pela consciência moral. Preceitos éticos e de convivência civilizada devem apontar referências e critérios objetivos quanto ao bem-estar social e individual, onde a liberdade é delimitada pelo respeito ao outro. Quanto a ter e ser (nem sempre necessariamente em oposição), há bens essenciais, de significados imateriais que concernem ao espírito; enquanto outros têm serventia passageira e, terminada a sua utilidade, são descartados e substituídos. O apego ao poder de duração transitória, almejado e satisfeito em termos absolutos na esfera do ter, pode ser mecanismo de escape para o eu e também para o coletivo. Como sintoma de angústia existencial oculta; ludibria os vazios, que povoam a profundidade de cada psiquismo, compensando-os com ilusões e desvios.

Há uma delimitação que não cria dúvidas à consciência com relação ao que oprime e violenta (sinal de barbárie) e o que humaniza e liberta (sinal de civilização). Ao prazer egocêntrico e à ambição narcísica não importa o bem-estar coletivo. O “Eu, etiqueta”, de Carlos Drummond, denuncia a opressão que danifica o indivíduo (e em consequência o corpo social), anulando a essência do ser, que torna-se objeto, coisa, mercadoria, marca, na escala do ter. O poeta ironiza o domínio mercantilista: cedendo às pressões do consumismo, o sujeito passa à condição de peça de propaganda, inscrita no que consome: “Eu é que mimosamente pago/ para anunciar, para vender/ em bares festas praias pérgulas, piscinas,/e bem à vista exibo esta etiqueta/ global no corpo que desiste/ de ser veste e sandália de uma essência/ tão viva, independente,/ que moda ou suborno algum a compromete” (na obra A palavra mágica, Editora. Record, p. 89).

É na sociedade modelada pelo materialismo capitalista que estamos inseridos. Sujeitos ao enfraquecimento ou apagamento da reflexão e da originalidade, substituídas pela compulsão de desejos e posses insaciáveis e de valor fugaz. Aqueles que transigem a normalidade tirânica e desviam do gosto padrão ficam desajustados e rejeitados; são rotulados de estranhos, devido à performance da unicidade do seu ser. Já do lado hegemônico, ficam uniformizados os que se igualam, se repetem, se entendem, se aplaudem, obedecendo a rituais de moda, culinária, academias, turismo, lazer, interatividade virtual, modelitos artificiais, plastificados, até para docinhos de festas, aquisição e uso de produtos ditados pelo mercado, que formata as cabeças em série. O desregramento fica nítido nos excessos de todo tipo; o resultado é a quantidade assustadora de descartáveis e lixos. Assistir a isso deixa angustiado quem recusa “etiquetas”, quem quer viver com menos e com qualidade. Indivíduos e grupos tragados pelo consumismo não conseguem perceber a compensação desenfreada, em que se atolam, tornando os seus vazios cada vez maiores e mais fundos.

Vânia Maria Resende

Educadora, doutora em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa  

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