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João Cabral de Melo Neto e Jorge Luis Borges: em comum, a cegueira

Vânia Maria Resende
Publicado em 20/08/2025 às 18:05
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Jorge Luis Borges (1899-1986) teria reagido à cegueira de maneira menos soturna que o poeta brasileiro João Cabral (1920-1999)? Se a pergunta se torna hipótese, pode-se supor que o escritor argentino foi, então, digamos, solar na sua condição de não vidente? Na verdade, é inviável sondar razões e sentimentos legítimos desses escritores, atingidos nos olhos, meio fundamental do ofício de ler e criar com a palavra escrita. Como não ver a palavra na própria obra e na dos outros escritores?

Talvez seja menos arriscado admitir que Borges e João Cabral teriam lidado de maneira diferenciada com a experiência pessoal da não vidência: ingrata e inoportuna, inimiga da entrega e dedicação dos dois à literatura. É possível que tenham respondido à adversidade com o feitio do caráter que marcou a relação peculiar de cada um com a vida.       

Alberto Manguel – argentino, nascido em 1948, autor de “Uma história da leitura” e “A biblioteca à noite”, publicações respectivas em 1997 e 2006 pela Companhia das Letras – situa, na segunda obra, a cegueira que se impôs a Borges certo dia, em uma viagem, quando ele lia um livro: “Nessa escuridão Borges viveu o resto da vida, lembrando ou imaginando histórias, reconstruindo mentalmente a Biblioteca Nacional de Buenos Aires ou sua própria biblioteca em casa. À luz da primeira metade da vida, escreveu e leu em silêncio; na penumbra da segunda, ditou e ouviu outros lerem para ele” (p. 224).

Na livraria onde Manguel trabalhava em Buenos Aires, atendeu Borges (junto com a mãe, de 88 anos, que o acompanhava), interessado em vários livros. Conta que o escritor “passava a mão sobre as estantes como se seus dedos pudessem ler os títulos” (“Uma história da leitura”, p. 30). O escritor perguntou ao vendedor se poderia ler para ele à noite. Manguel passou a ser leitor para Borges, e mais tarde se tornou autor das obras teóricas citadas. Em “A biblioteca à noite”, conta que Borges, já quase totalmente cego, assumiu durante 18 anos o cargo de Diretor da Biblioteca Nacional de Buenos Aires, até a aposentadoria. Aí, no seu escritório, ditava seus poemas e ficções e pedia às secretárias que lessem para ele em voz alta.

Borges sabia de cor algumas obras que escolhia para Manguel ler: “de forma que eu mal começava a ler e sua voz hesitante passava a recitá-los de memória” (“Uma história da leitura”, p. 30-31). Fazia intervenções com comentários, análise de procedimentos estilísticos de certos textos; provocações sobre as quais pedia a sua opinião. Assim, Manguel descobriu obras que passou a apreciar por terem sido apresentadas por Borges: “Eu ficava fascinado não tanto pelos textos que me fazia descobrir (muitos dos quais acabaram por se tornar meus favoritos também), mas por seus comentários, nos quais havia uma erudição imensa, mas discreta e que podiam ser muito engraçados, às vezes cruéis [...]” (idem, p. 32).

Um professor de Manguel lhe contou que o seu pai, um intelectual famoso que sabia de cor muitos clássicos, quando esteve no campo de concentração, ofereceu-se “como biblioteca para ser lido por seus companheiros de reclusão” (idem, p. 83). Manguel acredita que, “ao recordar o texto, ao trazer à mente um livro que um dia teve nas mãos, esse leitor pode tornar-se o livro, no qual ele e os outros podem ler” (idem, p. 75).

Leitura em voz alta e leitura silenciosa são modos distintos de se recepcionar uma obra. Cada um deles atua sobre o leitor com ressonâncias diferentes. O corpo – voz, tom, ritmo, modulação, pausas, gestualidade, expressão facial, modo de segurar e manusear o livro, etc. – de quem lê influencia na comunicação do texto e, logo, na reação dos receptores. Por sua vez, a leitura silenciosa segue o ritmo livre que o leitor escolhe, ao ler.

Tanto Borges quanto João Cabral foram perdendo a visão progressivamente. Depois de construir uma obra poética laboriosa extensa, sob a exigência do rigor estético, o poeta do auto de Natal pernambucano, “Morte e vida Severina”, ficou cego. Em dezembro de 1997, recebeu quem foi entrevistá-lo para a Folha de S. Paulo (https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc1010199926.htm) com esta afirmação: “Não sou mais um escritor. Estou cego”. Reportou-se a uma cirurgia grave no intestino e contou: “Fiquei 70 dias na UTI em 1993. Quando acordei, estava cego”, e conclui que uma luz forte sobre os olhos queimou sua retina. Sabe-se que ele vinha perdendo a visão anteriormente.

O poeta confessa na entrevista: “Não leio, não consigo escrever também, de forma que sou um ex-escritor [...]. Como não estou lendo, a literatura perdeu completamente o interesse pra mim. Eu não me lembro mais de nenhum poema meu”. Lamenta não poder ler: “Pra mim, é uma tortura não poder ler, sabe? Desde menino pequeno que não fiz outra coisa senão ler”. Também, se sente impossibilitado para a escrita, pois não adiantaria ditar para alguém, e justifica: “eu preciso ver a minha letra construindo o verso”.

 Vânia Maria Resende

Educadora, doutora em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa

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