ARTICULISTAS

Levando a chave, a foto e o sentido do que ficou para trás

Vânia Maria Resende
Publicado em 23/12/2025 às 18:33
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Fechamos portas automaticamente várias vezes por dia. Numa vida inteira, perdemos a conta das tantas vezes que abrimos e fechamos portas de carro; armário, guarda-roupa, cristaleira; de ambientes por onde passamos cotidianamente. Na nossa casa, passamos a toda hora por alguma porta, trancamos, destrancamos, sem pensamento perturbador, emoção, reflexão. Apenas passamos, sem cogitação de sentido existencial.

Quando poetas falam em portas nos seus poemas, com certeza, são metáforas – de passagem, abertura, entrada do ar, visão da luz, saída para a liberdade, e por aí vai. Drummond, por exemplo, falou no poema “José” da total falta de perspectivas para um ser humano no fundo do poço, acuado no mundo: “quer abrir a porta,/ não existe porta”. O mesmo Drummond disse em outro poema, “Procura da poesia”, que é impossível penetrar no reino das palavras e conviver com a riqueza de significados de cada uma sem a resposta positiva à pergunta: “Trouxeste a chave?”.

Com sentido simbólico, no percurso da vida muitas portas se fecham e outras se abrem. Às vezes, só mais adiante se percebe que o que parecia estar se fechando estava, na verdade, era se abrindo para algo maior e melhor. No movimento natural, os acontecimentos se iniciam e se completam; o processo segue um tempo, tanto fora, quanto dentro da gente. Tempo de se fazer, se refazer, se desfazer. Quando se encerra um ciclo, um sentido, um problema, uma dúvida, um sentimento, segue-se em frente, com novo entendimento. É assim desde a infância. Ao abandonar a chupeta, a criança conhece um grau de independência e segurança, livre do suporte do prazer ilusório que simulava o do seio materno.

Há alguns meses me deparei, por acaso, com o livro “A casa” (tradução brasileira de 2021, da Editora Devir), belo livro em quadrinhos de Paco Roca, roteirista e ilustrador espanhol. Ele narra a relação dos irmãos Vicente, José e Carla com a casa onde viveram, após a morte do pai, quando ela fica vazia. A partir daí, passam a frequentá-la, com a tarefa de desocupá-la e dar um destino ao que está dentro, e vivem elaborações em termos da história familiar. Viver essa experiência é libertador para uns, talvez sofrido, emocionalmente exigente para alguns. Para se desfazerem de pertences materiais, os irmãos se encontram várias vezes na casa e vão resgatando o significado de vínculos profundos com cada canto, objeto, acontecimento.

Li “A casa” no período em que vivi com duas irmãs a mesma experiência dos irmãos do livro. Achamos interessante o quanto havia de identificação entre o que experimentamos e detalhes do enredo. Em 2025, frequentamos a casa onde vivemos anos e que ficou fechada após a morte dos nossos pais; fizemos trabalho minucioso de desmontá-la, até chegarmos ao último ato: de fechar a porta pela última vez e levar a chave. Doamos mobílias, eletrodomésticos e tudo o que estava guardado com condição de uso, e descartamos o lixo. Despedimo-nos das vizinhas próximas.

Só restava a solução para os vasos de plantas, que não poderiam ser abandonadas, já que minha mãe sempre as cultivou com amor. Acertei com uma prima (que foi presença amiga constante na nossa família) de ficarmos com elas. Hoje, a flor do deserto está florida, embelezando a casa dela. Na minha, samambaias, begônia, azaleia e tinhorões compõem recantos mimosos. Fizemos como o vizinho Manolo, fiel amigo do último morador da casa de Paco Roca. Na cena final do livro, ele leva a figueira, para transplantá-la em novo terreno, onde, bem cuidada, crescerá feliz.

No nosso último dia na casa, fomos, em silêncio, cômodo por cômodo, para agradecer, certas de que suas paredes, teto, piso, portas eram mais do que construção material, e nós tínhamos deles um pouco da resistência de cimento, madeira, pedra, tijolos. Na porta da cozinha, olhamos o quintal, demorando o olhar mais nas velhas mangueiras; no galho alto de uma delas, um passarinho solitário, sem pressa de voar. Nossa sensação foi de que ele também cumpria o seu ritual de despedida. Fomos até a saída, passamos pela porta, trancamos. Já de fora, minha irmã tirou foto da fachada. Levamos a imagem, a chave e a duração da casa em nós, com móveis, objetos, plantas, fotografias, papéis, escritos, vivência e convivência que ela acolheu.

 Vânia Maria Resende

Educadora; doutora em Estudos Comparados em Literaturas de Língua Portuguesa

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