ARTICULISTAS

Livros, o sagrado e o simbólico

Vânia Maria Resende
Publicado em 30/10/2023 às 19:26
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Outro dia, recebi a visita de um amigo, o Fábio, que gosta muito de ler. Ele me trouxe a cópia de dois artigos meus antigos, publicados no Jornal da Manhã, que havia recortado e guardado. “A via da transcendência na história de São Lucas”, de 2013, foi publicado em duas partes; como lhe faltava a parte I, ofereci-me para completar para ele. Tem leitores, como o Fábio, que driblam o caráter transitório da publicação em jornal. Ao guardarem o que lhes interessa por algum motivo e voltarem a ler outras vezes, mantêm uma relação duradoura com o texto.

O Fábio buscou alguns livros, que estavam no carro, para me mostrar. Interessei-me pelo “Libertem a mulher forte: o amor da Mãe Abençoada pela alma selvagem”, título de Clarissa Pinkola Estés, psicanalista junguiana, desconhecido para mim. Já havia lido da mesma autora “Mulheres que correm com os lobos”, “Ciranda das mulheres sábias”, “O jardineiro que tinha fé”. Houve trocas entre mim e meu amigo: ele me emprestou o livro que eu não conhecia e lhe emprestei “O jardineiro que tinha fé”.

Trocar livros é como a troca de figurinhas entre crianças ávidas por preencherem um álbum. A diferença é que o leitor nunca completa o jogo, porque um livro leva a outro e esse a muitos outros, um sem fim. O amante de livros ou viciado garimpa o que é raro ou difícil de encontrar. Vai atrás até tomar posse, comprando em livraria ou sebo; pegando emprestado com alguém ou na biblioteca; fazendo trocas. O impetuoso que perde a razão pelo objeto do desejo até rouba um livro.      

Leitores têm manias e rituais singulares na sua relação com o livro impresso e a leitura. Os respeitosos demais chegam até a endeusá-lo; o pegam com todo protocolo; cuidam para não sujar e não fazer orelhas. Os ávidos, no prazer redobrado de ler enquanto comem e bebem, passam as páginas com resíduos nas mãos e deixam manchas no papel. Os afetuosos têm intimidade com o que manuseiam e com as palavras; sentem o cheiro, alisam a textura; afagam, apertam ou ajeitam o objeto sobre o peito, dormem lendo. Os que mergulham no espaço simbólico, como verdadeiros moradores da casa-livro, apropriam-se do que leem e expressam reações e emoções em comentários escritos nas margens.

Os livros do Fábio têm entre as páginas fita colorida, umas orações impressas em tamanho pequeno, e deles emana uma leve fragrância. Talvez os perfume por carinho e pelo respeito que cultiva por eles; como me disse, “as pessoas não sabem o poder que um livro tem!”. Penso que essa convicção não se aplica indistintamente a todos os livros, mas aos portadores de alto grau de informação, novidade, e aos de potência simbólica com possibilidade de encantar, clarear o reconhecimento de si e da realidade, revolucionar a visão com laivos de esperança, lucidez, deslumbre de beleza, e, talvez, até de consolar e salvar o leitor de desespero e solidão.

A afirmação de Fábio encontra eco no pensamento de Kakfa de que “um livro deve ser um machado para quebrar o mar congelado dentro de nós” (citado por Clarissa na dedicatória de “Libertem a mulher forte...”), e no de Stéphane Mallarmé, que diz: “Ao lermos, um concerto solitário e silencioso se produz para nossa mente. Todas as nossas faculdades mentais estão presentes nessa exaltação sinfônica” (citado em “A paixão pelos livros”, organização de Julio Silveira e Martha Ribas, Ed. Casa da Palavra, p. 12).

Clarissa se aprofunda no sagrado da dimensão simbólica de Nossa Senhora – princípio feminino, Grande Mãe – que abarca proteção, fertilidade, criatividade e outros sentidos. A autora sustenta, sobre as artes, que, “quando lhes é permitida uma expressão livre, em vez de ditada por outros, transmitem a voz misteriosa mais profunda, que sabe falar a linguagem da experiência numinosa, uma santa linguagem simbólica” (“Libertem a mulher forte: o amor da Mãe Abençoada pela alma selvagem...”, Ed. Rocco, p. 214).

Cada obra de arte é inauguração do novo; recria o mundo. Ainda que fundada no grotesco, na ironia, crítica ferina e desconstrução do superado, a denúncia revela o seu avesso. Clarissa considera que o sagrado “está semeado em termos inatos na psique, no espírito, na alma e no corpo. O sagrado não é algo que foi posto em nós. Ele é uma luz radiante que floresce a partir de nós” (idem, p. 292). Essa luz se funde à obra do artista.

Li e me enriqueci com o livro “Libertem a mulher forte...”. Antes de devolvê-lo, adquiri um, e também este outro da autora: “O dom da história – Uma fábula sobre o que é suficiente”, que estou lendo. São duas figurinhas novas que incluí no meu álbum ou na memória de leituras, graças às trocas com o meu amigo Fábio.

Vânia Maria Resende

Educadora, Doutora em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa   

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