Os versos [...] As coisas findas,/ muito mais que lindas,/ essas ficarão, do poema Memória...
Os versos “[...] As coisas findas,/ muito mais que lindas,/ essas ficarão”, do poema “Memória” de Carlos Drummond, se referem ao sentido de duração do que, ao se tornar ausente, se torna mais presente do que quando tangível, transcendendo o tempo real fugaz da beleza, do encanto, do afeto, da alegria. A obra de criação artística faz viver o objeto criado além da efemeridade do seu criador, enquanto a lembrança humaniza o homem, por não deixá-lo perder-se do passado, ou esquecê-lo. Registros indeléveis na profundidade interior são células amalgamadas à identidade, que não podem ser subtraídas. Já a memória coletiva, mantém legados da humanidade acesos, entranhados como compósitos das culturas. A obra de arte tem vidas no porvir; já a memória faz perdurar e renascer o passado quantas vezes ele for acordado no espírito, pela imaginação, pela emoção e pelos sentidos.
Na obra A poética do espaço Gaston Bachelard se dedica a imagens de natureza poética simbólica, desprovidas de dimensão concreta, tanto quanto os sonhos noturnos e recordações e devaneios que povoam o recôndito subjetivo de todas as pessoas. Entre elas, o filósofo se atém à “casa natal” e a outras do mesmo universo, como “canto”, “aposento”, “escada”, “gaveta”, “ninho”. Sobre a Infância, tempo em que povoamos e somos povoados pela casa, ele considera: “É no plano do devaneio e não no plano dos fatos que a infância permanece viva em nós e poeticamente útil. Por essa infância permanente, mantemos a poesia do passado”. Dos anos iniciais da nossa vida, ressurgem de súbito, na memória, vozes, cheiros, paisagens, cômodos e móveis, barulhos de chinelos chegando, sussurros, pitos e olhares adultos de repreensão, risadas bobas e incontroláveis; sabores, brincadeiras, passeios, cantigas, pessoas, objetos, animais e tudo mais que deixou vestígio em nós. A escola que será habitada na infância como extensão da casa natal, por representar abertura para o novo e ser promessa de imensidão insuspeitada de futuro, incita na criança o desejo e a ansiedade por frequentá-la. O livro Quantas saudades do colégio vou levar – crônicas colegiais (de 2005, publicado nos 120 anos do Colégio Nossa Senhora das Dores, com textos de estudantes de 1930-90) é um documentário de evocações sensíveis: o diapasão e o tom; o som do sino; a pedra onde se assentava no recreio; o claustro, a capela, a procissão; a boina grená, o chapéu bege, o sapato do uniforme; saltos em trampolim e arco de fogo nas festas esportivas; os portões de entrada do colégio...
Visões às vezes adormecidas, ou invisíveis, tênues, quase sempre inefáveis, dos espaços e dos mentores dos nossos tempos inaugurais, têm o condão de não desfazer os ricos fios do passado, que não morre para os seres de memória. Dos conteúdos informativos e de valores há indícios objetivos disseminados na personalidade, mas as Irmãs Dominicanas nos deram mais do que isso. Somos portadoras de lembranças e imagens do Colégio da nossa Infância: dos prédios majestosos e suas escadarias e seus longos corredores; da natureza com suas árvores, sombras e frutas, o bambuzal e as folhas secas, com que os pés brincavam de patins, o parque mágico e a gruta; das figuras das Irmãs, vestidas em hábitos severos que escondiam mistérios. Esse território, contornado por muros de pedra Tapiocanga, que resiste ainda em fragmentos, se ofereceu vasto e propício a rituais de passagem da criança e do jovem. Os bens imateriais inalienáveis que trouxemos daí estão vivos, e em clarões instantâneos de consciência desvelam uma medida nossa de eternidade, no aqui e agora.
(*) Educadora, doutora em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa; ex-aluna do Colégio Nossa Senhora das Dores e das Faculdades Integradas Santo Tomás de Aquino; ex-professora dessa Faculdade