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O surreal se tornou real

Vânia Maria Resende
Publicado em 29/08/2024 às 18:52
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Efeitos trágicos de eventos climáticos extremos se apresentam, a cada dia, maiores e mais graves em várias partes do mundo, inclusive no Brasil. Não faltam previsões de riscos (anunciados por ambientalista, climatologista, urbanista, engenheiro e outros) e avaliação pós-eventos. Assistimos como a cenas de filme de terror ao desaparecimento de rios, animais, biodiversidade inteira e a pessoas sendo levadas, com seus pertences materiais e afetivos, por enchente, vendaval, incêndio, mar de rejeito de mineradora. Desastres se avolumam, ganham proporção sem fronteira entre realidade e ficção.

Espantoso é que o que tem ganhado maior preocupação é a necessidade do Planeta se prevenir, preparar e adaptar ao novo normal de tragédias ecológicas. Cogita-se planejamento de novo perfil de cidade, construções em lugares habitáveis, etc. Mas não se dá ênfase à discussão de mudança do modelo de “devastação pela exploração capitalista” e “excesso consumista” que ele condiciona – fatores nefastos ao sistema ecológico.

Diferente do princípio regente desse modelo é o da visão holística, agregador, pois presume que tudo que integra a ordem sistêmica cósmica tem importância vital. A espécie humana se gaba de ocupar lugar superior sobre tudo e todos numa escala hierárquica e se reserva o direito de tomar posse de bens da Terra para proveito próprio e lucro material cumulativo. A sanha predatória lucrativa moveu o mercantilismo colonialista, foi facilitada e ganhou aceleração com mecanismos da revolução industrial, e daí em diante levou à exaustão as fontes primordiais de vida: água, geleiras, ar, solo, subsolo, montanhas, flora, fauna. Essas fontes reagem aos abusos sofridos.

São verdadeiros pesadelos os cenários vistos nos últimos tempos, como em Petrópolis, São Sebastião, e outros como o que abarcou o território do Rio Grande do Sul. Aqui, um cavalo chegou ao 3º andar do prédio, onde ficou vários dias sem comida e alimento, condição também de outro, imóvel, uns dois dias, num mínimo espaço sobre uma casa cercada de água por todos os lados; um terceiro, submerso, manteve, com esforço, apenas a cabeça de fora. Um porco morto ficou enganchado no alto do tronco de uma árvore. Um boi, também morto, foi parar no altar de uma igreja. Um cachorro, pendurado no muro pelas patas da frente, lutava para não naufragar.

Uma mulher agarrada 24 horas a uma torre de transmissão elétrica, esperando socorro, viu as águas arrastarem a filha adolescente e o marido, impotentes diante da morte. Pessoas tragadas pela água, pela terra; ilhadas nos telhados de suas casas; içadas por corda e levadas até o helicóptero. Porta de geladeira e colchão sendo usados como meio de navegação pela cidade, no movimento intenso de salvar vidas. Familiares procurando por desaparecidos; quase 200 mortos e outros não encontrados. O sombrio da realidade da enchente no Sul do país, como também de incêndios recentes em vários Estados, destruindo o verde, animais, casas, poluindo o ar, iguala-se ao da ficção de “A hora dos ruminantes”, de José J. Veiga: “Como podia alguém ainda pensar no futuro, fazer planos? Futuro para Manarairema era a morte e o apodrecimento no esterco, depois a carniça dos bois cobrindo tudo, o sol secando, a chuva molhando, o lamaçal” (p.91).

 Temos dúvida quanto ao futuro tornando-nos parte de catástrofes reais, com caráter tão absurdo quanto o do “realismo fantástico” (gênero do romance citado) e de enredos como do livro (e do filme) “Ensaio sobre a cegueira”, de José Saramago. Parecia que a experiência mais atroz tinha sido a da Covid-19, mas logo depois veio o pior, com cidades submersas e deterioração humana, social, ambiental como a de guerra. Desdobramento do caos nas cidades gaúchas compôs um quadro escatológico: cidade inteira debaixo d’água; pontes caídas; animais mortos e detritos boiando; cheiro forte de decomposição. Lixo acumulado. No panorama arrasado, refugiados climáticos se abrigaram em embarcação no rio; em escola, estádio, estrada; dentro de carros. Terra devastada, casas destruídas, a natureza morta.

Ailton Krenak, filósofo, da comunidade indígena do Vale do Rio Doce, critica a era atual, denominada Antropoceno. E, com visão de sabedoria ancestral, propõe um novo caminho contra a tristeza e a morte: “Temos que reflorestar o nosso imaginário e, assim, quem sabe, a gente consiga se reaproximar de uma poética de urbanidade que devolva a potência da vida [...]. Vamos erguer um bosque, jardins suspensos de urbanidade, onde possa existir um pouco mais de desejo, alegria, vida e prazer, ao invés de lajotas tapando córregos e ribeirões”. (obra “Futuro Ancestral”, p. 70-71).

    

Vânia Maria Resende

Educadora; Doutora em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa

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