A escritora mineira Adélia Prado, premiada com importantes prêmios nacionais e internacionais, é reconhecida pela crítica literária como uma das maiores escritoras brasileiras. Tornou-se conhecida no cenário nacional em 1976, com “O coração disparado”, avalizado pelo olhar sensível dos poetas, também mineiros, Affonso Romano de Sant’Anna e Carlos Drummond. Após esse livro vieram outros de poesia, contos e dois de literatura infantil. São de poesia os dois últimos: “Miserere” (2013) e “O jardim das oliveiras” (2025).
Três dimensões compõem a interface humana presente na poética de Adélia. Uma é a realidade comum, experimentada no chão do cotidiano, com vibração erótica, desejos, prazeres e os limites da fugacidade, inquietação, imperfeição, desamparo. Outra é o contínuo da vida, com herança de lastros ancestrais originários. A terceira são meandros do espírito, que alimenta o transcendente a que alça a consciência metafísica, onde reverbera a dualidade (e seus conflitos) dos campos material e espiritual.
À segunda face se relaciona o imemorial, que diz respeito ao prosseguimento da criação, na linha evolutiva; embora de natureza biológica temporal provisória, o transcurso é dinâmico na cadeia da perpetuação das espécies: “O que é entristecível, continuará,/ o que é risível, deleitoso, também./ Continuará a vida, repetitiva./ Novíssima continuará a vida” (poema “Um bom motivo”, obra “O coração disparado”). A “dor de viver” (expressão de um verso da Adélia) é inevitável, mas “não amar a vida, impossível./ Infinita vida que para continuar desaparece/ e toma outra forma e rebrota,/ árvore podada se abrindo,/ a raiz mergulhada em Deus [...]” (idem).
A terceira face gera perturbação, mas também humildade e gratidão pela dádiva da vida, que comporta limitação e sofrimento; grandeza e prazer. Comporta também pequenas iluminações face ao inexplicável e à beleza; percepção de um relance do eterno no fugaz; visão do sagrado não dissociado do plano material e da unidade de espírito e corpo: “Ninguém sabe o que a alma padece/ desejando a um só tempo o céu/ e as belezas do mundo” (poema “Mácula original”, obra “O jardim das oliveiras”).
São três faces entrelaçadas na complexidade de contradições da condição humana, sem necessariamente as três serem antagônicas entre si e no caráter particular de cada uma. O trivial soma o comum e o fantástico; o banal e o divino; o tentador e o bendito. Esse último aspecto se vê já no sentido duplo da expressão “São Tanaz”, no título do poema “Feira de São Tanaz” e no seu conteúdo: “De ponta a ponta, barracas,/ quero fugir dali/ acossada pelos tomates/ de inadequado esplendor” (obra “Miserere”).
A face transcendente abrange as ressonâncias de ser e estar no mundo, conjuntura tanto grandiosa quanto precária. Na conjunção matéria-espírito cabe encantamento e a angústia, que se alterna com consolo e clamor pelo amparo de uma divindade infinita, indulgente. Há um vínculo entre o humano e a fonte vital da criação: “Na minha carne eu sei que sois o amor/ e é dele que renasço/ e posso voltar a dormir” (poema “O que pode ser dito”, obra citada); “Quando o espírito vem/ é no corpo/ que sua língua de fogo quer repouso” (poema “Encarnação”, obra citada).
O poema “Contradança” dialoga, na construção intertextual, com o conto de fada “Branca de Neve”. Sobrepõe luz a trevas, superando a dissociação entre feio e belo; mal e bem, no enfrentamento do que está oculto no jogo de imagens de rainha má e princesa. Poeticamente, num relance de claridade, que é discernimento espiritual, a escolha é feita pela magia da dança da vida: “Mas eis que a noite constela-se/ e, com tanta acha de lenha/ e tanta casca de pau,/ já tenho como fazer uma fogueira bonita./ Espelho meu, estilhaça-te!/ Escolho o baile,/ quero rodopiar” (obra citada).
Adélia Prado faz a ponte entre arte e sagrado, deposita na palavra o júbilo da simplicidade do ser se sentir vivo, parte do que é natural: “minha reza é deitar na pedra quente,/ satisfeita e feliz como lagartixa no sol” (poema “Nossa Senhora dos prazeres”, obra citada). Assim, a transcendência não se dá além, mas no cotidiano da vida; não é elevação a plano superior à realidade imediata: “O capim cresce à revelia de mim,/ não há esforço no cosmos,/ tudo segue a si mesmo” (poema “Pontuação”, obra citada). A poesia é reverência; religação entre o terreno e o sublime: “A seus afagos não sei como agradecer,/ beija-flor que entra na tenda,/ flor que sob meus olhos desabrocha,/ três rolinhas imóveis sobre o muro/ e uma alegria súbita,/ gozo no espírito estremecendo a carne” (poema “O Pai”, obra citada).
Vânia Maria Resende
Educadora, doutora em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa