ARTICULISTAS

O velho e o novo no movimento da vida

Vânia Maria Resende
Publicado em 28/03/2025 às 18:39
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Há uns bons anos, quando alguém convidava a sua visita para “abancar”, queria dizer: se assente (em banco ou cadeira). Já foi o tempo de muitas coisas, como carro DKW Vemaguet, bererê (apelido que o carro fúnebre ganhou em Uberaba há muitas décadas), orelhão, celular de duas partes, mala de viagem de papelão ou madeira, mimeógrafo, escovão de ferro para chão encerado, relógio de bolso, telefone de parede, máquina de datilografia, a feminina caixinha de pó de arroz Cashmere Bouquet... As centenárias pastilhas Valda e pomada Minâncora e os cinquentenários chiclete Bazooka e cortador de unha Trim resistem, graças a usuários fiéis.

Praticamente não se escreve carta mais para ser enviada pelos Correios. Telegrama é raridade. Era chique receber um com cumprimentos por aniversário, casamento, formatura, morte. Agora, por e-mail e WhatsApp a mensagem chega de imediato ao destinatário. O livro infantil “De carta em carta”, de Ana Maria Machado, ilustrado por Nelson Cruz, narra a troca de cartas entre avô e neto. Com relação afetiva estremecida, escrevem um para o outro, pela mão de Seu Miguel, cujo ganho vem de ler e escrever cartas numa mesa na Praça dos Escrevedores. No filme “Central do Brasil”, a personagem Dora exerce essa mesma função na estação Central do Brasil. Existe de fato quem depende de alguém para escrever uma carta; faz parte da face precária do país que tem ainda analfabetos completos e funcionais.       

Meu avô materno era folheiro, fazia copo, frigideira e outros objetos artesanais e entregava na casa do freguês. O poeta Jorge de Lima escreveu o poema “O acendedor de lampiões” (incluído em livro de 1914), figura que desapareceu. O trabalho desses dois profissionais não é mais funcional, nem o de professor/a de datilografia, linotipista, ambulante de rua e seus pregões, oferecendo biju, quebra-queixo, pirulito, picolé, fruta, verdura.

O camelô viajava por fazendas e vilarejos com uma mala cheia de mercadorias. Em dois livros se encontra esse vendedor em andanças pela região do Triângulo Mineiro: o Xixi Piriá, em “Vila dos Confins”, de Mário Palmério, e Elias e outros tantos, em “O livro de Elias – poema a meu pai”, de Jorge Alberto Nabut. Camelôs modernos trabalham em banca fixa, às vezes em espaço coberto. Não é raro venda de tapetes, mantas e redes expostos em varal nas praças. Os vendedores geralmente são nordestinos; e tem os que oferecem, a pé, variedades, de tapetes a utensílios domésticos, que levam em um carrinho. O chinelo de borracha sem firmeza no pé escancara a precária condição econômica e social desses ambulantes.

Nas ruas de Uberaba, ouve-se, quase diariamente, o carro de som anunciando: “Olha a pamonha, pamonha quentinha, pamonha de doce e de sal, a melhor pamonha da cidade!”. O pregão ganhou caráter eletrônico: uma voz gravada anuncia o produto dentro de espaços comerciais ou em carro ou moto que circula pelos bairros.

Não só profissões, palavras, costumes ficam superados. Pessoas são descartadas, saem de cotação para entrevista, propaganda, foto, emprego. Isso quando decai o seu valor como objeto para o mercado, que fatura com o culto da eterna juventude e o jugo da beleza física. Torna-se moda que padroniza até mesmo modelo de boca, de unha postiça, de sobrancelha artificial e outras artificialidades.

Palavras como tabefe, chapoletada, perrengue, bufunfa, merreca, latumia, furreca, entojado, estrupício ficaram obsoletas, pelo menos em regiões urbanas. Caíram em desuso junto com um objeto, profissão, comportamento. Palavras e expressões entram em circulação e daí a pouco se tornam clichê desgastado. No meio jornalístico atual, estão em voga: azeitar; tratativa; resumo da ópera; bater o martelo; passar a régua; precificar. Já o jargão em vigor no mundo econômico é agregar valor. A literatura opera criativamente, na esfera linguística, com neologismos e revitalização inclusive de arcaísmos, como fez o genial Guimarães Rosa.

Objetos, profissões, costumes desaparecem, como também casas, bichos, seres humanos, tradições que fizeram parte da nossa história. A vida se movimenta e o novo substitui o que deixa de ser usado ou se extingue. A cultura tecnológica e virtual acelera o desgaste de tudo; o que acaba de entrar no circuito de consumo logo deixa de ter utilidade. Num imperativo de envelhecimento precoce, o presente se torna passado rapidamente. Por outro lado, há de se convir que ser dominado por saudade e nostalgia com relação ao que foi vivido impede o fluxo de possibilidades infinitas de porvir.

 Vânia Maria Resende

Educadora, doutora em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa

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