Jorge Bichuetti não era de Uberaba, mas veio para a cidade, onde estudou Medicina, e se enraizou profissional e afetivamente, deixando aí lastros valiosos da beleza do ser humano que ele era. Pela dedicação como psiquiatra, terapeuta, escritor e palestrante, inclusive com amplo trabalho voluntário, foi muito amado e respeitado. Quando o vi pela primeira vez, em entrevista a uma TV local, parei para ouvi-lo, admirada com o seu discurso denso e original. Depois, fui atraída mais uma vez pela força da sua palavra, ao encontrar no seu blog “Utopia Ativa” um texto de cujo título não me lembro mais. A abordagem afirmativa, não usual sobre a velhice por admitir potência no processo de envelhecer, fez crescer minha admiração pelo autor. A leitura me levou ao terapeuta. Nesse período, sentia-me inquieta com os novos traços de identidade da minha mãe, decorrentes do envelhecimento.
Nas sessões semanais de terapia, ampliei a percepção de que não há prazo existencial limite para a expressão de possibilidades criadoras. A constatação dessa fluidez subjetiva vai contra rótulos de fracasso, limitação, inutilidade, fraqueza, fim; enfim, de descarte, rejeição e anulação do velho na sociedade capitalista. Durante 10 meses, na relação com a humanidade ímpar do Jorge, passei por elaborações filtradas pela flexibilidade. Para isso, contribuíram também ler e ouvir o escritor, o palestrante e o professor.
Jorge agregava com naturalidade divergências e vertentes plurais, devido à sua virtude de síntese e diálogo, contra dissociação e antagonismo intolerante, excludente, preconceituoso. Sua espiritualidade se pautava na convergência e interconectava ciência, religião e arte. Clarividente, seu pensamento abrigava a dinâmica sutil da vida; rompia camisas de força cartesianas e rigidez de conceitos e juízos; entendia-se com a loucura e a poesia. Seu lado místico encontrava afinidade com Teresa D’Ávila, São João da Cruz, Cristo e outros. A alma do poeta se pactuava com a natureza livre da arte e do artista, decantada assim por Manoel de Barros: “quem anda no trilho é trem/Sou água que corre entre pedras:/– liberdade caça jeito”.
Jorge enviava diariamente aos amigos uma meditação que escrevia em torno de 5-6 horas. A última, de 4 de outubro de 2022, revelou a premonição do passo que ele estava prestes a dar, pois faleceu na madrugada do dia 5: “Quando... a boa nova andar nos campos... Inventemos um novo passo, bailemos. Deus é alegria”. Ainda no plano terreno viveu a alegria transversal, transcendente, na experiência de amor incondicional, ternura e coerência entre os valores espirituais e sua militância, entre a utopia e a ação política.
Da alma generosa de Jorge vinham respostas favoráveis a toda solicitação. Em 2019, participou do livro “O Brasil à luz do espelho – Sombras, conflitos e reflexões” duplamente: com um capítulo e na divulgação. Depois, escreveu um artigo e a apresentação para outro, “Travessia de libertação – Vida e obra de Juvenal Arduini”, lançado em 31/5/2022. Foi de Jorge, dentro da Upop-JA, a sugestão de se fazer a resenha crítica da obra de Arduini, seu mestre e farol. A preparação desse projeto nos aproximou de modo especial; na condição de coordenadora, tive muita troca de ideias com ele. Sinto-me grata pela cumplicidade; ela perdura na materialidade do livro.
Em julho de 2022, morreu a cachorrinha Lua, companheira de anos de Jorge. Para confortá-lo, enviei-lhe uma carta de Guimarães Rosa, de 25/1/62, onde o escritor escreve a um compadre: “Todo fim é exato. O que a gente tem de aprender é, a cada instante, afinar-se como uma linhazinha, para caber de passar no furo de agulha, que cada momento exige. [...] Você, simplesmente, encarnou para mim a Providência. [...] Oh, COMPADRE” (na obra “Relembramentos: João Guimarães Rosa, meu pai”, de Vilma G. Rosa). No tom sensível habitual, Jorge disse: “Oh, comadre. Como é belo. Vamos pelo caminho... Cada dia, um pouco mais da vida”. Esse nosso compadrio foi, assim, mediado por Rosa, que ele admirava tanto quanto eu.
Pretendia partilhar com o amigo e parceiro manifestações de leitores sobre o livro “Travessia de libertação” que eu vinha reunindo. Então, propus um cafezinho e lhe perguntei: “não seria uma boa ideia?”. Ele respondeu: “Excelente. Totalmente aprovada”. Em meio às intercorrências diárias, o encontro foi protelado. Se eu suspeitasse de que ele partiria em breve... Se tivesse atinado para o que escreveu em 2 de agosto, 2 meses antes de partir – “Impermanência. Somos a vida no caminho, mudança; iluminação. Somos todos metamorfoseantes” –, talvez tivéssemos curtido um café inesquecível.
Vânia Maria Resende
Educadora, Doutora em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa