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Olho de bicho e olho de gente

Vânia Maria Resende
Publicado em 16/07/2022 às 18:23Atualizado em 18/12/2022 às 20:43
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O olho de certos animais tem singularidades fascinantes. Sob determinado aspecto, alguns deles têm a vista mais abrangente da realidade do que a dos humanos; abrangência não sob o prisma de Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa) ao dizer: “Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo... / [...] Porque eu sou do tamanho do que vejo / E não do tamanho da minha altura...”. Aqui, no sentido metafórico poético, subentende-se que a visão interior vai além da percepção concreta e superficial e pode transpor horizontes, alcançar o que está longe do olhar, chegar ao invisível. É de Manoel de Barros o verbo transver, inerente ao olhar inventivo da arte, que vê e faz ver o novo, de través, o que ele confirma nestes versos: “As coisas não querem mais ser vistas por pessoas / razoáveis: / Elas desejam ser olhadas de azul – / Que nem uma criança que você olha de ave”. Animais são incapazes de processar interpretação subjetiva, elaboração criativa, de valor simbólico, contemplativo ou crítico; relevante é o raio de alcance objetivo do olho de alguns, devido à anatomia.

A atração pelo olho animal me levou a breve consulta (não uma pesquisa de rigor científico) sobre peixe, águia, macaco, borboleta, formiga, gato, libélula, cobra, elefante, vagalume... Nas imagens, prestei atenção nos olhos, e sondei o que há de especial neles. Olho de gato é incandescente, tem propriedade de enxergar no escuro e de absorver a maior luminosidade possível; a pupila versátil se dilata ao máximo e volta ao normal imediatamente, dependendo dos sentimentos que o felino tenha. As retinas das águias “possuem células detectoras de luz, o que lhes confere uma espécie de visão em HD, repleta de detalhes”; “a fóvea, de formato profundo e convexo, faz com seus olhos funcionem como uma lente teleobjetiva, como a utilizada por fotógrafos para captarem imagens de grande distância”1; a percepção de cores de uma águia é também muito superior à humana.

Descobri que a delicada e transparente libélula contém, de fato, mais do que dois olhos grandes redondos, isso porque sua estrutura “consiste de várias dezenas de milhares de pequenos orifícios, até 30 mil deles. [...] Eles são muito, muito pequenos e plantados tão próximos que parecem um enorme olho. Mas as facetas parecem separadas umas das outras. Acontece uma visão geral enorme em todas as direções, embora cada faceta enxergue um pouco”2. As borboletas têm olhos grandes e compostos, ou seja, formados por várias lentes pequenas; essas geram imagens em todos os sentidos, permitindo ao bicho uma melhor perspectiva do seu entorno. Também veem raios ultravioletas [imperceptíveis ao olho humano]3.

Vaga-lumes são como estrelas incontáveis na imensidão escura, ou pequenos focos brilhantes, olhos acesos no espaço. A luz que emitem se deve ao fenômeno “quimioluminescência” na parte inferior do abdômen. O mesmo fenômeno ocorre no corpo do besouro de fogo ou cucujo, um dos animais mais luminosos do mundo. Sua luz, que não acende e apaga como a dos vagalumes, concentra-se em duas manchas (parecidas a dois olhos) na superfície superior do seu protórax: “Na lanterna torácica, a luz tem uma tonalidade esverdeada. Na lanterna abdominal, é amarelada ou alaranjada”4.

Guimarães Rosa tinha admiração pelos animais. Visitava o Jardim Botânico no Rio e os observava, fazia anotações. A elaboração poética a partir de suas observações resultou no conjunto intitulado Zoo, incluído na obra “Ave, palavra” (1970). Em entrevista que ele deu a Gunter Lorenz5 em 1965, em Gênova, refere-se a vacas e cavalos como seres maravilhosos: “quem lida com eles aprende muito para sua vida e a vida dos outros. [...] Quando alguém me narra algum acontecimento trágico, digo-lhe apenas ist ‘Se olhares nos olhos de um cavalo, verás mui¬to da tristeza do mundo!’”. Eis aí exemplo do que o olho vê, quando ultrapassa o tamanho de uma pessoa.

Notas

1) http://revistagalileu.globo.com/Revista/Common/

2) https://pt.garynevillegasm.com/novosti-i-obschestvo/

3) https://super.abril.com.br/mundo-estranho/como-e-a-anatomia-de-uma-borboleta/

4) https://diariodebiologia.com/2011/04/

5) http://www.elfikurten.com.br/2011/01/dialogo-com-guimaraes-rosa-entrevista.html

Vânia Maria Resende

Educadora, doutora em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa

 

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