Assumir posição contra ou a favor da concepção pedagógica de Paulo Freire (1921-1997) demanda leitura da sua obra. Esse é o meio de se conhecer o ideário do pensador (reconhecido internacionalmente, e declarado “patrono da educação brasileira” pela Lei nº 12.612 de 2012), cujo centenário é comemorado em 2021, a partir de 19 de setembro, data do seu nascimento. O que ele legou de postulado e testemunho é coerente com a educação como determinante de desenvolvimento humano e social digno, só viável sem opressão e alienação das consciências. Da falta de leitura do autor ou do contato superficial com recorte de citação de texto, decorrem distorções e ataques levianos a ele. Há alguns anos, ouvi um professor de Uberaba (isso mesmo, um professor) dizer, de maneira banal, sem respeito e cerimônia, em um programa de TV local, que Paulo Freire era um enganador. Não só no Brasil dos dias atuais, portanto, ele é demonizado por intolerantes com a essência libertária da sua pedagogia. Os que o criticam sem conhecer a sua obra pecam por desonestidade intelectual.
A educação emancipadora, que se constrói com pessoas e seus sonhos, sentimentos, ideias, reflexões, envolvidos na relação com objetos (conteúdos e a realidade concreta), é insuportável para mentes que tutelam conservadorismos e retrocessos – pilares de uma escola estagnada, triste, obscurantista – e almejam uma neutralidade inadmissível para o espaço escolar. Como disse Paulo Freire, a educação não é neutra. Não se exime de um lado ou posição; nos objetivos e rumos pedagógicos da escola estão seu modo de pensar (sua tendência ideológica identificada a concepções específicas), enfim, sua identidade política (não com sentido partidário).
A vertente de escola reprodutora de informação se detém na transmissão-recepção de aspectos técnicos do conteúdo. Supõe-se que opere com educador e educando passivos, alienados do seu tempo e do contexto real. É improvável, sob essa vertente, a formação da mentalidade combativa, que se inquiete com os fatores socioculturais, econômicos, políticos, enfim, históricos, de desequilíbrios sociais e ecológicos, e se empenhe em saídas para o bem-estar coletivo. A educação silenciada pela falta de consciência reflexiva não dialoga, nem contesta, não cria vida em movimento solidário. O confinamento na objetividade acrítica pode condicionar juízo absoluto, produtor e adesista de preconceitos, fundamentalismos, trama de enunciação falsa: de mentira como verdade.
A educação à qual Paulo Freire se dedicou é campo dinâmico que incrementa o conhecimento sem excluir afetos e belezas, alegria e criatividade; é inconciliável com omissão, elabora decisões, gera mudanças, abarca a diversidade. Já o campo tecnicista homogeneizador não fomenta elaborações analíticas e questionamento filosófico. Vimos aqui dois modelos divergentes: o burocrático, focado no objeto, e o dialógico, onde o sujeito interage criativa e criticamente com o conteúdo. Além desses modelos ou filiados a eles, outros modelos podem existir, mas nenhum de escola destituída de identidade.
A tentativa de demolir a pedagogia crítica, com aprovação de leis e projetos, não tem êxito no sentido de garantir despolitização ou neutralidade pretendida. Além do mais, o processo educacional é amplo e complexo, admite frestas de escape, amplia perspectivas não submissas a controle com restrições objetivas do domínio externo (escolar e familiar). A afirmação de Paulo Freire de que “a raiz mais profunda da politicidade da educação se acha na educabilidade mesma do ser humano, que se funda na sua natureza inacabada [...]” (Pedagogia da autonomia, 2007, 36ª ed., p. 110) leva a pensar que a aprendizagem não começa e termina dentro dos limites da escola e do lar; inclui descobertas em incursões pessoais, independentes. As vias são muitas, entre elas a internet, onde boa parte das crianças brasileiras acessa informações ilimitadas, muitas vezes longe de monitoramento adulto.
Vânia Maria Resende
Educadora, doutora em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa