Minha angústia e pesar por um bem-te-vi
Minha angústia e pesar por um bem-te-vi, que perde a inteireza e cuja tristeza se reflete no corpo desasado, sem canto, vão além do prejuízo pela perda de valor estético. Descarto a pretensão de repor o que lhe foi arrancado, para voltar admirá-lo belo na sua leveza, e sou tomada pelo questionamento sobre as razões do funcionamento social descompensado, que afeta pessoas e grupos na sua identidade. Pode ser que a ação de cortar as asas de um passarinho carregue a falta de liberdade de alguém, sem saída da própria prisão interior.
Se quem faz isso é uma criança dominada por conteúdos perversos do seu psiquismo, a Psicologia e a Educação podem fazer alguma coisa por ela. A primeira, ajudando-a a libertar-se dos malefícios que atuam contra o seu ser imaturo e contra os outros; a segunda, educando-a, para que se aproprie de valores construtivos e autoestima. A condição humana ultrapassa níveis primitivos e bárbaros, ao substituir atitudes feias por outras saudáveis, pelo uso criativo, positivo, da energia e pela posse do senso ético civilizador, que freia impulsos inescrupulosos, inconsequentes, violentos. Do contrário, a perversão pode dominar e, sob o ímpeto assassino e cruel, os indiferentes ao sofrimento alheio estarão agindo sem culpa.
A terapêutica que auxilie na saúde e a aprendizagem que, formando a consciência responsável, contribua para o autocontrole sobre aspectos inconvenientes da irracionalidade melhoram o homem, religando-o ao valor da natureza criada. Temos visto atitudes simplesmente inconcebíveis, do mais alto grau de horror da delinquência, de quem põe fogo em pessoas, punindo-as por não disporem de maior quantia em dinheiro para lhes dar, em troca da vida. Cogitemos que sejam jovens drogados os que mutilam bem-te-vis e incendeiam seres vivos. Lançam à sua volta a morte que vai dentro deles próprios. Infelizmente, não são poucos os desarrazoados, que, querendo se vingar, ou se auto-afirmar, atiram contra alvo errado. Vítimas do “ter” como único valor, subjugados pelo consumismo capitalista, perdem o rumo e um sentido essencial de vida.
Se a mutilação é feita por um adulto, convenhamos, de motivação pueril, ao executá-la satisfaz também ordem do ter, típica do estágio egotista da infância, ou fruto da realidade materialmente banalizada, onde cresce a necessidade de fetiches. Aprisionamento de uma ave, em gaiola, ou solta no chão, impedida de voar, como o bem-te-vi abandonado em um quintal, não deixa de atender a um desejo caprichoso. As asas foram cortadas, para ele não fugir do domínio de alguém e servir a admiração duvidosa, particular e egoísta, ou foi usado em divertimento sádico e em seguida descartado?
Tentei salvar o bem-te-vi, mas não teve jeito, eu não era outro bem-te-vi. Ele se entristeceu por ouvir, paralisado, do chão, o canto desdobrado dos outros da sua espécie em voo, e morreu na minha mão. Diante do passarinho inerte, eu, impotente com a violência incontida, de todo tipo, que virou rotina, tive a visão anti-contemplativa, como do “Soneto do gato morto”, de Vinícius de Moraes. Lamentando o que a maldade humana produz e as causas que vão além de quem a pratica, sem perder a esperança, penso em antídotos que cortem o mal pela raiz. Quem sabe a poesia, como da obra A arca de Noé, também de Vinícius, seja um deles, infiltrando, na infância, ternura na alma, e amor e encanto pela vida, de gente e passarinhos?
(*) Educadora, doutora em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa