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Pistas ancestrais de cavernas e de cacos soterrados

Vânia Maria Resende
Publicado em 05/12/2022 às 20:02Atualizado em 15/12/2022 às 22:32
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Reconhecer que um caco (às vezes soterrado milenarmente), descoberto em uma escavação, possa significar rastro, lastro, vínculo, história, memória, enfim, legado de vida, depende não de visão poética ou visionária, mas, apenas, de informação. Ignorância e falta de ética do pragmatismo inescrupuloso somadas devastam beleza, riqueza natural e vidas. Nessa combinação, o que interessa é lucro material, à custa de morte de pessoas, animais, água, ar, vegetações, montanhas e de corrosão de solo e subsolo. Na era industrial, num piscar de olhos, a derrocada mecânica põe abaixo florestas, polui, eleva o consumismo e o aquecimento global, mata rios e povos originários, põe em risco a vida do planeta. Nesse contexto de visão rasteira, não se olha nem para o passado nem para o futuro; ruína é lixo descartável e arqueologia é palavra morta.

Indivíduo desinformado, que se gaba da sua ignorância, é pimpão e petulante. Há um tempo, foi encontrado um caco de azulejo em escavação de terreno onde seria construída uma loja de uma rede empresarial brasileira. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, dentro da sua função, usou critérios de análise do material. O Presidente, na condição de autoridade máxima da nação, confessou não saber o que era o Iphan, mas se colocou contra ele, entendendo que estava paralisando a obra e travando o desenvolvimento do país. Disse a uma plateia de empresários que “cortaria” o pessoal do órgão, em represália, e foi aplaudido.

Destruir a identidade de uma caverna é desprezar o equilíbrio de “ecossistemas frágeis e delicados”, em cujos ambientes “fluxos de energia estão se processando a cada momento, sendo preciso todo cuidado quando existem intervenções humanas” (www.icmbio.gov.br/cecav/cavidades-naturais-subterraneas). Um decreto federal de 2022, n.º 10.935, previa, em um de seus itens, normatizar a exploração econômica de cavernas, em vez de protegê-las. O ministro Ricardo Lewandowski, do STF, respondeu o recurso do partido político Rede, com rejeição desse item, inadmissível por demolir estruturas milenares com ação danosa para a biodiversidade.

O propósito de autorizar demolição do que deve ser preservado, como o decreto pretendia, gerou oposição de pessoas sensatas e da comunidade de pesquisadores que produz conhecimentos específicos sobre Espeleologia (estudo das cavernas), Geografia, Geologia, Arqueologia, Pedologia, Petrologia, Edafologia, Paleontologia, Paleoclimatologia, Paleoantropologia e outras áreas pouco conhecidas como essas. Cientistas e pessoas bem informadas, como devem ser também os governantes, sabem que um código primitivo inscrito em um caco ou osso revoluciona a ciência e a humanidade.

O documentário “Sapiens: o novo início”, de 2020, mostra a exploração fóssil em Marrocos que levou à descoberta destes dados arqueológicos: a espécie humana se originou muitos séculos antes do que se admitia até então; a ocupação territorial foi maior do que se pensava e por grupos simultâneos em locais distintos; o cérebro humano passou por constante mutação, segundo a comparação de crânios de diferentes fases da evolução.

A vida corre calma no subterrâneo das cavernas. Silenciosamente, elas participam do equilíbrio ecológico, abrigando na paisagem exótica espécies da flora e da fauna que sofrem risco de extinção. Por ali passa rio; a luz penetra por frestas; gotejam pingos pacientes, formando sólidas estalactites.

Por ser expressão de harmonia estética (presente também na natureza), a arte revela tensão subliminar discordante de qualquer decomposição criminosa. No livro “Maquinação do mund Drummond e a mineração”, José Miguel Wisnik percorre a crítica que o escritor fez, ao longo de sua obra, à ação destruidora de mineradoras, em especial a Vale. Drummond denuncia a violência da mineração nefasta, que mutila e decompõe montanhas indefesas, como nestes versos de “A montanha pulverizada”: “A cada volta de caminho aponta/ uma forma de ser, em ferro, eterna,/ e sopra eternidade na fluência.// Esta manhã acordo e não a encontro,/ britada em bilhões de lascas,/ deslizando em correia transportadora/ entupindo 150 vagões/ no trem-monstro de 5 locomotivas”.

Vânia Maria Resende

Educadora, doutora em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa

 

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