ARTICULISTAS

Porque a leveza se torna necessária

Vânia Maria Resende
Publicado em 25/04/2020 às 10:55Atualizado em 18/12/2022 às 05:52
Compartilhar

Dentro da lógica pragmática da crua realidade mercantilista anseios íntimos, fantasias, devaneios, enfim, necessidades subjetivas profundas são empecilho ao lucro. O pensamento utilitário é inimigo da imaginação, porque ela desvia o foco objetivo. Os gráficos das transações do mercado destacam números, taxas, estatísticas, não pessoas e indicadores de incentivo e cultivo de bens imateriais, preservação de meio-ambiente, valorização da memória e de patrimônios culturais. Os expedientes do utilitarismo – pressa, aceleração, cobrança de metas, desempenho ágil, rendimento etc. – são pressões que oprimem a alma, rompem a harmonia legítima, inibem a liberdade visionária. O peso de sucessivos fatos grosseiros, desastres previstos e repetidos, batelada de informações, monitoramento das reações por câmeras, manipulação de notícias falsas, gana de consumo... Essa sobrecarga de fatores desgastantes mina energia e fôlego, sufoca a poesia, aniquila a leveza.

Leveza e profundidade não se opõem necessariamente. Ocorre apenas que, quando a dureza fica insuportável por violentar a liberdade, a leveza passa a ser desejada como contrapeso, lenitivo, defesa vital. Italo Calvino a propõe para o terceiro milênio, e um dos seus argumentos é este: “Cada vez que o reino do humano me parece condenado ao peso, digo para mim mesmo que à maneira de Perseu eu devia voar para outro espaço. Não se trata absolutamente de fuga para o sonho ou o irracional. Quero dizer que preciso mudar de ponto de observação, que preciso considerar o mundo sob uma outra ótica, outra lógica [...]” (obra “Seis propostas para o próximo milênio”).

Segundo Calvino, a literatura pode mudar a imagem que temos do mundo. Se ela não bastar, diz ele: “para me assegurar que não estou apenas perseguindo sonhos, então busco na ciência alimento para as minhas visões das quais todo pesadume tenha sido excluído” (obra citada). A exploração do desconhecido pela ciência é surpreendente e mágica, e fascina qualquer público, se a informação não for hermética. Como faz o físico brasileiro Marcelo Gleiser, na obra acessível “O caldeirão azul: o universo, o homem e seu espírito”. Calvino nos leva também à poesia de Cecília Meireles, cujo estilo concilia tenuidade e temática metafísica densa. O poema “Inscrição”, por exemplo, contrabalança os sentidos simbólicos de pedra, água e ar nestes versos: “Não encontro caminhos/ fáceis de andar./ Meu rosto vário desorienta as firmes pedras/ que não sabem de água e de ar.// E por isso levito./ É bom deixar/ um pouco de ternura e encanto indiferente/ de herança, em cada lugar”.

O olhar atento se deslumbra com o prodígio regenerativo da vida. Ela nasce e renasce teimosamente; a morte não a estanca. O verde resiliente brota da lama, da aridez, dos resíduos. Resistente, a natureza ressurge, superando maus tratos. Logo após a poda de uma planta, os brotos dão o sinal da vida nova. Extraordinários são seres de beleza delicada e fluida, como o pavão majestoso; o gato sutil, de passos leves que nem plumas; o gracioso beija-flor, de voo ligeiro; a transmutável borboleta, de paciente metamorfose; a libélula, de asas translúcidas; a aranha que guarda na entranha o tecido invisível da teia; a rã-de-vidro, de transparência incrível; o vagalume, de brilho fugaz. No poema “Preparação para a morte”, Manuel Bandeira exalta o milagre da vida perfeita e efêmera em “cada flor”, “cada pássaro”.

A impermanência às vezes angustia. Porém, é alentadora tendo como valor intrínseco a renovação. A dinâmica cíclica do universo não conserva nada com identidade inalterável. Quanto à História, a depender da direção dada pelos agentes que a constroem, desafia retrocessos, questiona valores, insurge contra o que é corrosivo, segue na dinâmica de avanços. O artista, artífice da façanha de movimentos utópicos, cria novos reais e seres com muitos papéis ficcionais. No palco da vivência interior, na condição flexível o ser atinge densidade na leveza, sendo vários ao mesmo tempo ou em momentos distintos; abarca a multiplicidade por meio de transformações versáteis. A chave da literatura de Fernando Pessoa – coabitada por diversas faces artísticas – está justamente nestes versos de um dos heterônimos, Ricardo Reis: “Tenho mais almas que uma/ Há mais eus do que eu mesmo”.

Vânia Maria Resende

Educadora, doutora em Estudos Comparados em Literaturas de Língua Portuguesa

 

Assuntos Relacionados
Compartilhar

Nossos Apps

Redes Sociais

Razão Social

Rio Grande Artes Gráficas Ltda

CNPJ: 17.771.076/0001-83

JM Online© Copyright 2024Todos os direitos reservados.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por