Nos últimos dias de 2012, vi em um noticiário, na televisão, uma cena de afeto espontâneo na despedida entre uma criança, de alta, e uma enfermeira com a qual ela criou laços
Nos últimos dias de 2012, vi em um noticiário, na televisão, uma cena de afeto espontâneo na despedida entre uma criança, de alta, e uma enfermeira com a qual ela criou laços, na certa, pelo modo como foi cuidada. O amor, que vi na cena e não me saiu da memória, não ocupa com frequência as notícias televisivas e as relações sociais corriqueiras. No atual universo de individualismo dominante, é habitual o comportamento movido por razões particulares, que levam cada um a se deter e resolver com urgência o que garante ganhos, não raramente materiais, atendendo a ambição e o interesse próprio, com benefícios para si e o núcleo parental.
Foi esta imagem que passou rapidamente no noticiário e me tocou: Cauã, de sete anos, bem sucedido no transplante de medula óssea, ainda no leito, mas pronto para deixar o hospital, recebendo carinho e também o demonstrando a quem cuidara dele e o cativara com ternura maternal. Se essa enfermeira tem filho, ela dispensou ao menino enfermo uma medida mais nobre de amor, universal, porque desinteressado, ultrapassando a natureza individual da dedicação de mãe. A alegria e o bom humor nos últimos momentos com o garoto me fizeram pensar no quanto ela pôde tornar mais leves os dias críticos do menino. O espírito brincalhão os envolveu, quando eles cantaram: “ai, se eu te pego, ai se eu te pego...” (sucesso de Michel Teló Assim você me mata); a repetição conivente do refrão indicou que já vinham cantando juntos a música.
Por sua vez, o Cauã também me encantou. Palavras que não sei reproduzir agora – lembro-me bem de que, negando despedir-se, ele dizia “Ah! Não, Ah! Não” – expressaram o seu desejo de ter, ou, guardar para sempre aquela pessoa especial, a meiga enfermeira. Como poderia esquecê-la, se foi a relação de pessoa para pessoa, propiciada pela conduta humana dela, que deve ter tornado suportáveis os sofrimentos e desconfortos da experiência no hospital, e, por isso, ele não estava levando marcas traumáticas dali?
Cauã quis tirar a máscara, para a despedida. A beleza do gesto subentende estar com o outro em profundidade, sem atrapalho, subterfúgios, impedimentos. Esse sentido puro dá ao amor e à vida uma grandeza recíproca, livre da diferença de sexo, idade, de reservas provenientes da dependência humana. A transparência, que Cauã impôs como condição, denota crescimento interior, refletido no seu olhar de reconhecimento sensível. Voltará para casa curado e transformado, não só no corpo, carregando a descoberta de que é possível contar com aqueles (não muitos) que socorrem e salvam, incondicionalmente, em momentos difíceis.
Quando o amor nascido da falta (eros) bate na aorta, na velhice – segundo Drummond, ácido, adoçando a boca murcha, melancólico e meio desconsolado – “já é um pouquinho de saúde”, usando a expressão de Guimarães Rosa. Entre os três tipos de amor apontados por André Comte-Sponville (obra Pequeno tratado das grandes virtudes), o do garoto e a enfermeira é philia: de partilha, união de forças, potência duplicada pela potência do outro, pela alegria do outro. Na velhice ou na infância, seja eros, seja philia, invade, como a “cantiga do amor sem eira nem beira” do poema, altera as batidas da vida e “vira o mundo de cabeça para baixo”.