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Sadismo na infância?

Vânia Maria Resende
Publicado em 01/11/2024 às 19:29
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A resistência a se admitir manifestação de sadismo (esporádica ou frequente) no comportamento infantil tem a ver com visão idealizada da criança, como ser angelical, imaculada, inocente, sem maldade, incapaz de violência. Na verdade, ela é humana na mesma condição que o adulto, com contradições: bem e mal; pulsões construtivas e destrutivas; reação de vileza e grandeza. A diferença é que criança não tem ainda valores morais e éticos constituídos para vigilância, controle, combate de ação perversa ou irracional.

O amadurecimento do pensamento lógico, no momento próprio de cada criança, possibilita a compreensão plena e objetiva do que é prejudicial a si e ao outro. É essencial na formação infantil orientação adulta com informações, transmissão de valores, diálogo. E ocupação lúdica da energia e do tempo, sem prejuízo da espontaneidade e da fantasia de aventuras exploratórias da realidade, e sem sufoco da liberdade com atividades de valor obrigatório exaustivo: dança, natação, curso... Na infância se alicerça padrão de conduta civilizada, respeito a diferenças, limites, direitos e deveres, e à integridade ecológica (em toda a extensão da natureza) e dos bens culturais.

A sensibilidade pode responder com empatia espontânea e frear ações maléficas; a racionalidade pode prover a consciência de reflexão para atitude responsável. Atuando junto, elas orientam a mentalidade individual e de grupo a criar e conservar, não depredar; cultivar vida, não morte; cuidar, não maltratar e dilapidar; cultivar paz, não ódio, barbárie e força bruta.

Duas notícias divulgadas no Brasil em outubro registraram atos cruéis cometidos por menores. No dia 13, em Nova Fátima (PR), uma criança de 9 anos matou mais de 20 animais, coelhos e porquinhos da índia. No Dia da Criança ela esteve presente na inauguração da Fazendinha (anexo a um hospital veterinário), que abrigava animais. Aí foram encontrados os que o menino arremessou, esquartejou, mutilou, matou, como foi divulgado na imprensa. Um dos veterinários proprietários do espaço exprimiu desolação com a tragédia: “[...] se deparar com uma cena daquelas é uma sensação horrível de impotência, de tristeza”. A notícia informou que o garoto vive com a avó e não tinha histórico de comportamentos violentos.

Outra ocorrência, do dia 18, envolveu um estudante de 14 anos que matou 3 jovens e se matou, numa escola em Heliópolis (BA). Em âmbito nacional, tem sido recorrente esse tipo de ação de matadores em massa, lamentavelmente menores de idade. No geral, foram alvo de bullying na escola onde praticam o ato, têm autoestima baixa e ferida; caráter reprimido, silencioso. Sob a aparência normal escondem uma face sombria, justificada por graves desajustes emocionais e familiares, uso de droga etc.; e ocultam o plano malévolo arquitetado. Afinal, eles são vítimas, também. 

Os dois fatos concitam a questionamentos por vários ângulos. Quanto aos menores, o que falhou ou faltou na educação, no lar e na escola? O que fracassou na relação adulto-criança? Esses casos e outros tantos levam a pensar sobre causa ou causas da violência no comportamento infantil e juvenil como herança genética; influência negativa do meio; facilidade de aprendizagem perniciosa por via virtual; impulso aventureiro que confunde fantasia-realidade; excesso de energia; vazio e solidão que geram ansiedade; efeito alucinatório de droga; trauma sofrido; patologia mental e emocional. Relacionar “sadismo e infância” é complexo, não apropriado a reflexão breve, conclusão superficial e generalizada. Todo comportamento resulta de certos fatores, e cada sujeito tem uma história com implicações específicas.       

Há muitas décadas livros já apresentavam crianças movidas por complicações e distúrbios, inclusive sadismo, como Menina má (1954), de William March, e O outro (1971), de Thomas Tryon. Da literatura brasileira, Boca do inferno (1957), de Otto Lara Resende e algumas obras de Luiz Vilela trazem enredos trágicos vividos por criança e jovem protagonistas. As obras citadas não são apropriadas ao leitor infantil. No leitor adulto, elas podem desencadear discussões por ângulos como os anteriores elencados.  

A ficção para criança não tem que ceder ao estereótipo de um mundo cor de rosa, com seres bonzinhos e acontecimentos só felizes. Medo, ameaça, conflito, embate com a violência e relaxamento ao vencê-la são elementos estruturantes de certos gêneros literários, estão em contos de fada, histórias de assombração. Numa boa literatura, desafio, confronto, transgressão; metamorfose, morte, ressurreição direcionam tramas com soluções criativas, que lhes permitem se desenrolar com naturalidade. A criança se fortalece internamente em contato com o fantástico da arte literária, experimenta o enfrentamento de tensões. No plano simbólico, processa aspectos agressivos, subjetivos e externos, em vez de reprimi-los.   

 Vânia Maria Resende/ Educadora, Doutora em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa

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