A memória da Bilica é um arquivo precioso de informações sobre seus avós (entre eles, nossas avós paternas, que eram irmãs) e seus descendentes, além de amigos e conhecidos. A prima desfia histórias em ziguezague, com narrativas em que lembranças saem umas das outras. É preciso de tempo para sorver, sem pressa, detalhes e curiosidades. Os matizes variam: cômico, nostálgico, trágico, afetivo, poético. Uma história me toca em especial, e a trarei aqui. O enredo breve tem doses de poesia e mistério e é permeado por forças extraordinárias. As personagens, já falecidas, são o avô materno da Bilica e dois filhos dele: Antero e Chiquinha. Conheci apenas a Chiquinha e a sua alegria peculiar.
Bilica era bem pequena quando esse avô, o Neftali, de apelido Talico, morreu. Ela o conheceu pelo que ouvia a família contar. Era como um farmacêutico prático; consultava o livro “Flora Medicinal” para tratar problemas de saúde. Ela relembra a viagem que ele fez com um amigo pelo Vale do Rio Doce. Teriam que passar por um território indígena; questionado pelo amigo se conseguiria atravessá-lo, respondeu-lhe: “Não tenho arma, tenho alma”. Pelo contato, na ocasião, com os indígenas, aprendeu uma prática de cura natural que ele reproduzia com o nome de pílula Krenak.
Talico foi proprietário do comércio “Casa França” em Uberaba, na esquina da rua Tiradentes com a rua Padre Zeferino, onde funciona atualmente a Choperia Archimedes. Vendia bebidas, vela, cerâmica e outros produtos. Após a sua morte, em 1946, a família manteve o empório por algum tempo. Antero trabalhou como bancário em várias localidades. Estabilizou-se em Presidente Prudente, onde morreu em 2010. Nessa cidade, criava em gaiola o Chico, um pássaro-preto. Chiquinha alertava o irmão de que o pai não aprovaria a prisão do bichinho.
Um dia, Chiquinha teve um sonho em Uberaba, onde morava. Via o pai chegando, vestido com casaco preto longo, trazendo nas mãos gaiolas com portas abertas. Pela manhã, telefonou para o irmão para contar o sonho pra ele. Antes de ouvi-la, ele disse que estava chateado com o sumiço do Chico na madrugada, pois a gaiola amanhecera com a porta aberta. Ela concluiu: “nosso pai soltou o Chico”, e passou à narração do sonho. Chiquinha acredita que o pai, ser incorpóreo, sobrenatural, agiu para a libertação do passarinho. Eis aí um mistério, que não está ao alcance da razão desvendar...
A imagem onírica das gaiolas é indicativa de acoplar a gaiola do pássaro-preto às de portas abertas. Há entre os dois fatos ocorridos na mesma noite – sonho da Chiquinha em Uberaba e abertura real da porta da gaiola em Presidente Prudente – uma sincronia inquestionável. Para Jung, teria havido sincronicidade; para Freud, coincidência.
Sistemas objetivos e subjetivos são constituídos por energias, que vigoram em matérias de conteúdos perceptíveis ou imperceptíveis; elas estão em tudo, no plano consciente ou não, na expressão concreta ou impalpável, evidente ou simbólica. A Física que deu passos além da lógica cartesiana dimensionou a complexidade, por exemplo, da dinâmica espaciotemporal não linear, não causal. Essa ciência avançou na percepção de sutilezas não vistas a olho nu e constatou a rede de interconexões da totalidade, inclusive a psicofísica, ou seja, formada pela subjetividade e o universo. Sonhos abarcam no seu simbolismo tanto imagens imediatas como um fluxo profundo e remoto de experiências individuais e do inconsciente coletivo. A realidade compreendida pela perspectiva quântica – observando-se que o sonho também é campo rico de realidades – talvez seja vista, pela ótica negacionista ou tradicional, como ficção ou fantasmagoria.
Pois é, minha gente, a Bilica não mente quando conta o que viveu e quando reconta histórias ouvidas, como a das gaiolas que a Chiquinha lhe contou. Quem conta um conto aumenta um ponto aqui e tira outro ali, é certo. É inegável também que a vida envolve incógnitas e não obviedades, o que a torna fantástica. Hamlet acena a estranhezas quando responde o seguinte a Horácio: “Há mais coisas no céu e na terra, Horácio,/ Do que sonha a tua filosofia” (em “Hamlet”, de Shakespeare, tradução de Millôr Fernandes). Já o ditado castelhano “não acredito em fantasmas, mas que eles existem existem” gera a controvérsia da incredulidade sobre o que é estranho ou, talvez, sobre o que a mente não consegue alcançar.
Vânia Maria Resende
Educadora, doutora em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa