Viajando um certo dia por uma estrada no Sul de Minas, passei a ser parte da cena de uma vaca correndo desembestada. Ela fugia do embarque para o abate, no dia seguinte. Torci para que se livrasse da perseguição e que não fosse pega. Por não conseguir esconder minha torcida, ouvi do matuto, empenhado em capturá-la, empregado da fazenda de onde ela escapara, o seguinte: “até nós vamos morrer, dona!”. Divirjo do pensamento resignado desse homem, que certamente se adaptou à dureza do trabalho rural. É indispensável ao ser humano suprir necessidades imediatas, sem dúvida; a carne da vaca dá prazer ao paladar, mata a fome, sacia o corpo, que se acomoda até que o estômago grite outra vez. Porém, só a visão transcendente e contemplativa alcança belezas maiores e duradouras. A alma pede outro tipo de repetição, como buscar conhecer cada vez mais um mesmo assunto; voltar a encantar-se com o mesmo poema, música, filme; trazer lembranças da memória; ver o pôr do sol todo dia...
Não é o tema que define o que é estético, nem tampouco o gosto é absoluto. Vejo beleza na mansidão das vacas pastando placidamente, sem ameaças; já um criador de gado pode ficar fascinado por um boi garboso e pagar milhões por ele. Não admiro um animal exposto em partes em vitrine, para venda, às vezes com sangue ainda respingando. Comovo-me com o brilho inútil da escama do peixe morto e com seu olho que parece vivo ainda. Vejo caça e pesca como práticas perversas, já que há prazer no divertimento de perseguir, capturar, matar a presa. Caçar e pescar com respeito se justificam eticamente se forem única alternativa de alimento e de sobrevivência. A manutenção da vida não depende apenas da carne (em amplo sentido, porque há muitos outros alimentos vegetais).
Recepção e fruição de bens simbólicos e artísticos são via de sintonia com valores de vida mais profundos e duradouros. Por essa via é possível transcender, ir ao íntimo, ao segredo do que está oculto, não descoberto pela visão superficial, e assim encontrar brilho até no que é trivial. A comunhão sutil com o que se contempla não implica tomar posse do que se admira para esgotar o seu sentido; a cada nova conexão com o objeto admirado se desvelam outros significados. Há coisas e seres que perduram com encanto dentro da gente, sendo sustento imaterial ao afeto, à memória, ao espírito. Um instantâneo flagrante de beleza perdura em nós, por esta perspectiva: “[...] se olharmos com o segundo olho, veremos um outro mundo, o mundo da eternidade, onde o que foi vivido não morre, apenas adormece, à espera” (Rubem Alves, obra ‘A eternidade numa hora’, p. 291).
Retomo o olhar prático daquele homem acomodado ao “porque” ou “já que vamos morrer”, e o sobreponho à visão poética de outro matuto, personagem de história real, contada pelo escritor Inácio de Loyola Brandão em uma palestra. O sertanejo caminhava no final do dia pelos campos, servindo de guia a um sujeito letrado. Diante do espetáculo do sol que se despedia com raios luminosos sobre a água do rio, o homem simples disse ao outr “o sol tá dando de beber ao rio, doutor!”. O encantamento desse homem ao flagrar a grandeza do instante atesta que não só místico, filósofo e poeta que escreve versos transcendem.
Neste tempo de pandemia no Brasil, em que a desigualdade social ganha evidência e a fome fica gritante, o socorro é premente. A luta pela vida integral, com dignidade irrestrita, entretanto, é mais complexa e longa. No mapa de uma nação rebaixada a níveis inferiores, são muitos os sobreviventes da realidade caótica. Os que se dão por vitoriosos deixam suas digitais impressas no caos. Sempre há tempo, e é premente também reivindicar e refletir. Por isso, evoco a lucidez de Antonio Candido, nesta passagem atual de uma palestra de 1988: “[...] são bens incompressíveis não apenas os que asseguram sobrevivência física em níveis decentes, mas os que garantem a integridade espiritual. São incompressíveis certamente a alimentação, a moradia, o vestuário, a instrução, a saúde, a liberdade individual, o amparo da justiça pública, a resistência à opressão, etc.; e também o direito à crença, à opinião, ao lazer e, por que não, à arte e à literatura” (obra ‘Vários escritos’, 3. ed., 1995, p. 241).
Vânia Maria Resende - Educadora, doutora em Estudos Comparados em Literaturas de Língua Portuguesa