No poema “América”, Drummond diz: “Uma rua começa em Itabira, que vai dar em qualquer ponto da terra,/Nessa rua passam chineses, índios, negros, mexicanos, turcos, uruguaios./Seus passos urgentes ressoam na pedra,/ressoam em mim”. Na Uberaba pequena da minha infância, tive experiência parecida à do poeta. De continentes distantes, japoneses, libaneses, italianos, portugueses, espanhóis, alemães, afrodescendentes de famílias de Angola, Moçambique ou outro país “vieram dar” no bairro Estados Unidos, resultando em exótica diversidade.
O artigo “Imigrantes italianos em Uberaba”, de 24/03/2020, no blog do Arquivo Público de Uberaba, faz o seguinte registro: “Pedreiros, agricultores, ceramistas, funileiros, engenheiros, arquitetos, poetas, pintores, escultores e escritores italianos chegaram a Uberaba em grande quantidade no ano de 1894. Depois dessa data vieram mais alguns, em número menor. Foi o maior contingente de estrangeiros que desembarcou na cidade”. Já o artigo “Uma história social de Uberaba” (https://dialnet.unirioja.es), de André Azevedo, situa a vinda de imigrantes sírios e libaneses para a cidade no séc. XIX; aqui e na região muitos foram mascates e viajavam até a pé, vendendo produtos variados. O autor informa que, na década de 30, Whady José Nassif, filho de comerciante imigrante libanês, foi vereador e prefeito.
Anos 60, padrões provincianos, população uberabense menor que 90 mil. Nessa época, como moradora do bairro Estados Unidos, testemunhei o convívio entre nativos e imigrantes, em especial sírio-libaneses, que eram em maior quantidade. De caráter vibrante, deixaram herança de sua cultura marcante. Culinária rica. Plantio caseiro de uva. Ambientes festivos. Músicas tocantes. Velórios dramáticos, onde entoavam um lamento em coro. Nas suas vendas (muitas) se comprava pão, bebida e outras coisas e se ouvia a engraçada mistura de línguas brasileira-árabe. Entre os vendeiros da minha rua, tinha três Elias, de sobrenomes Camilo, Dahas, Jaborandi.
O comércio funcionava com notável participação de famílias de imigrantes. A fábrica de bala Thori vendia para várias cidades; já a fábrica do Antônio tamanqueiro era modesta na confecção de tamanco. Mais de uma loja de tecido: São Geraldo, Natal e Veneza. A padaria Espéria, da família Pucci, produzia delícias. O Posto Frange abastecia os carros em número não elevado como o de agora.
Quanto a espaços educativos, dois eram pioneiros: Instituto de Cegos do Brasil Central e Lar Espírita. Este acolhia crianças com problema familiar e criou original banda musical de meninas que se apresentava em Uberaba e fora. Escolas oficiais eram os grupos escolares Brasil e o que hoje se chama E. E. Prof. Alceu Novaes; mais a E. E. Quintiliano Jardim, que, a partir de 1966, ganhou sede própria no bairro. A Escola Normal formava normalistas; recebeu o nome de Colégio Est. Prof. Leôncio Ferreira do Amaral, alterado depois para E. E. Mal. Humberto de Alencar Castelo Branco. O ônibus circular marcava o tempo com idas e vindas e parada nas esquinas. Como tudo, a prosa também era sem pressa, na porta das casas, à noitinha.
A diversidade do bairro se expressava ainda em perfis humanos e eventos típicos. A ingênua Maria Boneca; a louca Teresinha Morango; a parteira mamãe Dolores. A moderna Ir. Catarina, da igreja N. Sra. de Fátima, que andava de Lambretta. O criativo Gerson Daia, ventríloquo, que fazia show em esquina e praça com bonecos confeccionados por ele. A vida se animava com quermesse, festeiro, prenda, leilão; jogo no Independente Atlético Clube; Orticã com turma de moças na rua; quadrilha ao som da sanfona vindo de quintal próximo. A fé era cultivada em ensaio de Congo (no fundo da Igreja Católica); missa, culto protestante, sessão espírita ou atividade da Seicho-No-Ie; folia e festa de Santos Reis. Visitas amáveis uniam amigos e parentes. Diferentes dessas eram as visitas secretas feitas às chamadas “casas de encontro” (bordéis), que eram mais de uma.
Em 1969, o homem pisou na Lua. Em 1972, a TV Uberaba se instalou na avenida General Osório – sinal do progresso mudando o cenário. Pouca coisa se manteve no mesmo lugar: Sanatório Espírita; E. E. Castelo Branco, igreja N. Sra. de Fátima; estádio do Independente, sem time e jogo. A praça Carlos Gomes e as ruas com mais e mais letreiros luminosos... O comércio ocupando espaços: lojas, academia, corretora de imóveis, supermercados, restaurantes, pet shop, hortifrútis, pizzarias, bares até em calçadas, etc. O mundo se modernizou, e não foi diferente para o bairro Estados Unidos.
Vânia Maria Resende
Educadora, doutora em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa