Refaço o trajeto de duas meninas, com idade de 6 e 7 anos mais ou menos, feito há quase cinco décadas atrás. Elas caminhavam à noite por chão de terra, indo a uma Festa de Santos Reis no bairro Abadia, onde moravam. Até aí, nada de excepcional, apenas que não é tão comum mais rua de terra em zona urbana, em cidades médias como Uberaba, com boa infraestrutura. No tempo das meninas muitas ruas eram de terra; depois foram ganhando calçamento de pedra e mais tarde asfalto.
Não tem nada estranho mesmo no fato de duas meninas percorrerem a pé um trecho que lhes seja familiar, ao alcance da vista de adultos que não as deixem se perder. Décadas atrás principalmente, crianças iam a pé de um lugar a outro, sem problema, a passeio, ou como mandalete, indo à casa de algum familiar, levar recado, objeto, agrado. Sem perigo de tráfico de gente, malfeitores, ofertas de droga. Iam desgarradas de algum adulto, que não ficava preocupado, fossem avós, pai, mãe, tios. As distâncias eram pequenas; todo mundo conhecia todo mundo. Só havia três causas de medo para os pequenos nos seus deslocamentos (feitos com valor lúdico). Os chamados loucos, com pedaços de pau ou pedras nas mãos; assombração (e só no escuro); lobos maus dos contos de fantasia, narrados nas calçadas, na porta das casas, ou na cozinha aquecida com fogão de lenha.
As duas meninas, irmãs, iam felizes para a festa e nem pensavam em fantasma; não atravessaram matas fechadas. Iam tranquilamente, sem aborrecimento, caminho a fora, pensando em tanto doce que iam comer. Enquanto iam, viam tantas coisas que as distraíam! Povoadas pela Infância, nem se constrangiam, nem questionavam a falta gritante acusada pelos seus pés. Até as vejo dando pulinhos, parando, catando miudezas, pequenas coisas, como cacos de vidro brilhando, tampinhas de garrafas para coleção. Numa operação impossível para a matemática resolver, tinham um único par de sandálias de borracha (maior que o número delas), para dividir entre os quatro pés. Sem disputa ou vaidade, encontraram a solução. Combinaram que apenas um pé de cada uma ia calçado; e em alguns trechos uma ia calçada e a outra descalça. Foram inteligentes, não perderam tempo com briga; acordo feito, curtiram as alegrias e surpresas do caminho. Uma dessas irmãs é a Joana. Convivo com ela, aprendo com ela. Peço que repita a sua história para eu ouvir muitas vezes. Ela continua dando importância a ir adiante, com sapato ou sem sapato, com um pé só calçado, ou os dois, quando possível.
Muitas coisas mudaram. Parece imaginária a situação da Joana: cômica (absurda) sem deixar de ser trágica socialmente: um par de sandálias servindo a quatro pés de crianças. Não revoltadas, nem constrangidas, elas caminharam sem birras, equacionando o problema, sem outra alternativa, digna e confortável. Ainda tem pés andando descalços por aí, caminhando no asfalto ou na terra, porque nem tudo são flores para todos. Passando da realidade à fantasia, recordo-me dos pés de “A canção dos tamanquinhos”, de Cecília Meireles. O poema me enchia de emoção, de empatia com a menina que caminhava embalada pelo “troc troc” dos seus tamancos. Ela atravessava poças d’água noturnas, e eu a imaginava num abandono sombrio, seguindo sozinha. As duas meninas ingênuas pisavam em pedrinhas, sem noção da realidade pontiaguda que machucava os pés descalços. A menina da Cecília tinha um clarão mínimo no caminho (o que eu não entendia ainda); era um pequeno escuro a menos, para os dois pés calçados, na absurda escala social.
(*) Educadora, doutora em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa