Arriscar-se a favor de si mesmo ou de alguém muito querido em perigo de morte é algo natural. Movida pelo vínculo umbilical, a mãe pula na frente de um carro para proteger sua criança prestes a ser atropelada e até, talvez, morta. Este é um ato amoroso natural, não heroico propriamente. Ato heroico é de quem enfrenta incêndio, pula na água ou num buraco, escala um prédio, para salvar uma pessoa desconhecida, por impulso empático, genuinamente humano. Seja por ligação parental, seja por atitude fraterna e cidadã, é compreensível e louvável o risco que se corre por uma grande causa.
Insensata é a aventura macabra de se lançar contra si e a favor de causa ridícula, de natureza destrutiva, idólatra. Indivíduo e grupo fanáticos têm emoção conturbada, cognição dissonante, logo, juízo de valor e interpretação da realidade com credibilidade suspeita. Seus atos afetam a saúde e a segurança sociais. Cenas de explosões foram vistas pela TV praticadas no dia 13 de novembro por um homem de 59 anos contra seu carro e seu próprio corpo. Brasileiro comum, chaveiro, pai de dois filhos, ex-candidato a vereador em Rio do Sul-SC, de onde se mudou para Brasília, para preparar a ação terrorista. Cometeu o ato sinistro de se explodir diante da Estátua da Justiça, próxima ao STF, na Praça dos Três Poderes. Falhou o plano que tinha de matar o Ministro do Supremo, que julga os envolvidos no ato antidemocrático do 8 de janeiro. No dia 17, sua ex-mulher ateou fogo no corpo e na casa dele em SC; foi hospitalizada em estado grave.
Uma perturbação venenosa com graves consequências avançou com seus tentáculos no Brasil e em outros países, por efeito de fanatismo e fake news, entre outras causas. Afeta relações familiares e de amigos, no trabalho, na rua, etc., sendo expressão do mal, de ignorância, desinformação, desvirtuação da verdade, mentiras; intolerância; ódio, violência, defesa de uso de arma, força bruta; apologia de tortura, ditadura, destruição e morte.
Fanatismo é base do extremismo odioso de Necropolíticas, que encontram adeptos em várias faixas sociais, entre os ingênuos, frágeis, vulneráveis, maldosos e violentos. Ausência de pensamento livre, crítico independente aprisiona mentes, gesta terrorismo e tragédia, que, afinal, é nacional e mundial, mais que de um cidadão isolado. O brasileiro citado morreu acreditando ter cometido ato patriótico; mas não passou de alienação originada de convicções radicais de um líder e seus fiéis seguidores.
Estreou no dia 7 de novembro, nacionalmente, “Ainda estou aqui”, filme brasileiro elogiado pela crítica e já premiado, adaptação do livro do mesmo título, de Marcelo Rubens Paiva. O enredo é o drama vivido pela mãe do autor, viúva, e sua família, na ditadura, quando em 70 se deu sequestro, tortura, assassinato, desaparecimento do corpo de Rubens Paiva, engenheiro, antes deputado federal, marido de Eunice. Mulher forte, ela enfrentou grande sofrimento e não se deixou abater; deu aos cinco filhos legado de luta, coragem, superação, dignidade. Síntese disso é a fotografia que tira com eles para ilustrar uma matéria após a morte de Rubens. O fotógrafo diz: “não precisa sorrir; uma foto menos feliz”; ela responde: “nós vamos sorrir” e fala aos filhos: “sorriam”. Muda-se do Rio para São Paulo, forma-se em Direito e se torna militante de direitos humanos, em especial dos indígenas.
Outro filme, “Ferreira Gullar, arqueologia do poeta”, de 2018, é sobre a vida árdua do artista no exílio, imposto pela ditadura militar. Expõe prejuízos emocional, social, econômico, moral, familiar, profissional gerados por esse regime. O homem se supera como poeta na criação obsessiva do longo “Poema sujo”; gravado na voz do autor por iniciativa de Vinícius de Moraes, que o visitou no exterior, teve divulgação no Brasil e edição em livro. O lançamento sem Gullar valeu como protesto e pressão pra sua volta ao país.
Ditadura e extremismo político de direita têm afinidade, no caráter de cinismo, perversão, brutalidade; falso patriotismo, ufanismo; manipulação de símbolos nacionais, de moral e religião. A repressão não conseguiu abater Eunice e Ferreira Gullar e condená-los a um mundo sombrio, tanatológico. Os dois foram livres na inteligência e sensibilidade com que levaram em frente uma vida criativa. Ela não se afundou no luto; ele não foi aniquilado pela depressão no exílio. A advogada fez com a palavra a defesa de causas humanas relevantes e o poeta escreveu belos versos como estes: “Como um tempo de alegria/ Por trás do terror me acena// E a noite carrega o dia/ No seu colo de açucena// – sei que dois e dois são quatro/ sei que a vida vale a pena” (poema Dois e dois: quatro, da obra “Dentro da noite veloz”).
Vânia Maria Resende
Educadora, doutora em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa