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Carro dá status

Comprar um carro tornou-se para ele uma idéia fixa. Uma obsessão. Qualquer um servia

Padre Prata
thprata@terra.com.br
Publicado em 13/09/2015 às 11:52Atualizado em 16/12/2022 às 22:19
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Comprar um carro tornou-se para ele uma idéia fixa. Uma obsessão. Qualquer um servia. Pensava num carro seminovo, como lia no anúncio das locadoras. Um carro elogiável. Um carro que lhe desse prestígio, status.

Conversava com os filhos. Com a mulher. Discutiam pormenores. Tinham que apertar o orçamento. Economia de guerra, pensava. E era preciso andar depressa antes que uma inflação prevista lhe comesse o pouco que sobrava. Aboliram o sorvete, o lanche aos domingos no Shopping. Diminuíram a carne, a margarina. Despediram a diarista. A “patroa” mesma arrumaria a casa e lavaria a roupa. Economizavam: um olho na caderneta de poupança e outro no orçamento.

Foi assim que conseguiu financiar um carro. Fechou o negócio sem contar pra ninguém. Escolheu um de seu gosto. Seminovo, o que significava uma quilometragem de pouco mais de 50 quilômetros. Era um carro pequeno, mas a família era pequena, daria para quebrar o galho até conseguir um maior. Afinal, o carro era seu, ninguém tinha nada a ver com isso. Apalpou o certificado de propriedade. Sentiu-se mais importante. Passou a identificar-se com um grupo mais alto na escala social. Classe “B”. Tinha vergonha de ser chamado de proletário. Respirou mais aliviado. Naquele momento começou a viver uma nova lua de mel. Com o carro.

De repente começaram seus problemas. Todo mês havia qualquer coisa para consertar. Além disso, aquele trânsito deixava-o maluco. Para ele, ninguém sabia guiar. Suava frio quando via uma mulher no volante. Lugar de mulher é dentro de casa, pensava antiquado. Os motoqueiros o irritavam. Não havia lei para eles, andavam a 100 por hora, cortavam pelo lado direito e aquele “pipipi” da buzina deles punha-no maluco. Além disso, ainda xingavam de palavrão. Tinha vontade de atropelar um motoqueiro daqueles para que eles aprendessem a ter educação. Havia ainda o medo dos “radares”. Ficavam escondidos no meio das árvores. Tudo na traição. Um dia foi flagrado na avenida da Saudade a sessenta e oito por hora. Retratinho, multa e ameaça de perder pontos. Voltou lá na avenida e não conseguiu descobrir onde estava amoitado aquele “pardal”.

Cada dia seus problemas se agravavam. Não que a promissória mensal o apertasse. Não era isso. Seus problemas eram de outra natureza. Era uma raiva esquisita que vinha lá de dentro. Pensou que estivesse ficando “psicado”. Começou a xingar. No começo, muito de leve. Com o tempo aderiu ao palavrão. Dos piores. De vez em quando a mãe do outro ia de embrulho.

Quando viu nos jornais que haveria um aumento na gasolina, que o dólar já estava a mais de três reais, não se conteve, vendeu o carro. Voltou para casa a pé. Pensou na reação da mulher, dos filhos. Ninguém iria entender aquela decisão. Arranjaria uma desculpa. Diria que fizera um exame com um médico competente que lhe aconselhara a andar todos os dias a pé, uns sete quilômetros . Seu colesterol ruim estava muito alto. Amanhã mesmo iniciaria a caminhada diária. Sete quilômetros. Afinal, lera no jornal que há certas mentiras que são construtivas. Graças a Deus!

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