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O cinema de Carlos Diégues (V): Um Trem Para as Estrelas

Guido Bilharinho
Publicado em 29/03/2025 às 11:18Atualizado em 31/03/2025 às 05:52
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Quando Carlos Diégues (Maceió/AL, 1940 – Rio de Janeiro/RJ, 2025) dirige  Um Trem Para as Estrelas (1987), já percorrera longo caminho de realizações, não isento, porém, de altos e baixos, desde Escola de Samba Alegria de Viver, que compõe Cinco Vezes Favela (1961), passando pelos assuntos históricos e sociais (Ganga Zumba, Rei de Palmares, 1963; Xica da Silva, 1976; Quilombo, 1983); dramas urbanos (A Grande Cidade, 1965; Chuvas de Verão, 1977), temas políticos (Os Herdeiros, 1969); comédia musical (Quando o Carnaval Chegar, 1972) e pela saga de grupo mambembe excursionando pelo interior do país (Bye Bye Brasil, 1979).

Um Trem Para as Estrelas insere-se entre seus dramas urbanos. Após as cenas iniciais esteticamente indefinidoras, mas, tematicamente introdutórias à problemática do protagonista, o filme vai pouco a pouco adquirindo consistência.

Ao armar a trama em torno do desaparecimento da namorada do protagonista e de sua afanosa e persistente procura da desaparecida, o cineasta adentra e apreende a ambiência do Rio de Janeiro, revelando algumas das mazelas da sociedade urbana moderna.

Se no começo paira um limbo de eteriedade e irrealidade com o súbito sumiço da personagem na presença do namorado e às vistas dos espectadores, deixando no ar um quê de mistério e perplexidade, essa impressão ou esse clima muda radicalmente na delegacia.

Aí instala-se a realidade e, desde logo, é ela quem comanda a ação. Não mais o implausível, o inexplicável, mas, a concretude do real, em cenas de miúdos gestos e acontecimentos, de diálogos crus e objetivos.

Desfilam, então, pelo menos dois lances que captam o instante que passa, revelando a situação de definidos extratos sociais.

Um deles, o dos pais da personagem tresmalhada, que representam, em seu relacionamento, modo de vida e conduta, o execrável cotidiano da classe média baixa. O aparente exagero de suas manifestações é emblemático. As cenas, se não são impagáveis na sua animalização “civilizada” do ser humano, tornam-se inapagáveis como radiografia social e humana. O episódio da esposa afogada nas imagens da TV e do marido refugiado no elevador do edifício, sentado em uma cadeira, bebendo cerveja e cantarolando, é tão insólito quanto bem construído.

Não são, porém, apenas eles a qualificar o filme. Além das intervenções e juízos peremptórios do delegado, expressando não só a consciência como a própria consistência do real, em adequadas direção e interpretação de Milton Gonçalves, avultam, constituindo uma das marcas do filme, os fatos desenrolados na favela com seu misticismo em estado bruto. A crucificação da “santinha”, sua violação e o que mais ocorre em torno disso, remetem à atmosfera e a imagens de certos filmes italianos de De Sica e Fellini. Porém, tropicais, luminosas. Desventrando a favela, expõem-se os indivíduos em condições sub-humanas de vida entre a rotina e a anormalidade.

No filme, o que tem valor não são os fatos, mas as revelações que procedem. Não só as apontadas. Porém, outras mais, em rica amostragem humana e social, desde relacionamento entre mãe e filho, comportamentos marginais e alienantes da juventude, falta de orientação e idealismo da maioria e o sem-sentido de suas vidas, subsistindo porque existem.

Um Trem Para as Estrelas demonstra, em parcimoniosos gastos de produção, que a obra de arte prescinde (e repele) a suntuosidade, o ostentatório e o espetaculoso. Um filme autêntico e desaparatoso como a crueza do real.

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