Ela é doceira de mão-cheia
Ela é doceira de mão-cheia. Aprendeu o ofício com a mãe. Ficava nas pontas dos pés para ter a visão. Assim começou o seu aprendizado, que se prolongou ao longo da convivência. Era a sua alegria, além das bonecas, ver a mãe e a avó quebrar ovos, separar as gemas das claras, bater tudo numa bacia, jogar outros ingredientes e amassar até que chegasse ao ponto. Havia um truque para saber o ponto ideal. Fazia-se uma bolinha daquela massa e jogava-a na água. Se flutuasse, era porque a puxa de doce já podia ser enrolada. Era doceira de tradição e, de todos os doces que ela fazia, o cajuzinho ainda é o meu predileto. Não havia festa ou encontro familiar que não tivesse uma disputa para pegar os últimos pedacinhos que pudessem ter sobrado, mas que jamais sobrariam hoje, o que antigamente era impossível acontecer, pela severidade dos pais. Havia quem era repreendido pela mãe. “Não quero ver ninguém à volta da mesa de doces”, dizia uma. A outra aconselhava o filho a não pedir, esperar ser servido. As mais severas chegavam a ameaçar a criança com castigo e surra, caso ela ficasse próxima à mesa ou passasse vergonha nos pais, pedindo doce. Era por esta porta estreita que ficávamos entre o desejo e a repreenda. Entre o obedecer e o castigo. Entre o castigo e o doce. A educação sempre foi uma aliada do medo e da ameaça como instrumentos de aprendizagem. O que mudou foi a estratégia do ameaçar. As ameaças educacionais de hoje são as palmatórias de ontem, que ao invés de doer na carne doem na esperança do não se realizar como profissional de sucesso. A todo instante, o mercado exige um perfil diferente, que é igual àquele que foi substituído outrora. Ter conhecimentos específicos, especializados limita o profissional. O fundamental hoje é ter uma visão ampla do mercado, que só é possível àqueles que têm formação heterodoxa. Falar um idioma é importante, mas estará fora do mercado quem não souber tratar a língua mãe com competência. Relacionar-se bem, praticar um esporte, não ser gordo, saber cozinhar, contar uma piada, ter uma namorada bem engajada, pertencer a um credo religioso, beber, não fumar, fumar e não beber são alguns dos atributos que o mercado exige, desde que a pessoa não seja gorda. Mas, se for magra, poderá estar fora dos padrões se não comer verdura, legumes e se não estiver constantemente de regime. Quando a sua mãe amassava aquele doce, era porque se gostava de cajuzinho. E doce não faz mal para criança alguma. Não era o modismo de chefs que ditava o que era. Era a cozinheira, a quitandeira que fazia os doces e as guloseimas para a meninada. Hoje, ela senta no tamborete da cozinha, liga o rádio e o deixa sintonizado enquanto amassa descompromissadamente um bolo de fubá. A sua alma dorme na alegria despreocupada de prazeres. Desde menina dizia que preferia a alegria ao desejo e que a saudade não era coisa de se preocupar quando se tem do que falar.
(*) Professor