(Última narrativa)
Bobas coisas, dirão alguns. Concordo até. O que se pode esperar de uma criança dez ou doze anos daquela época. Duas coisas me deixaram marcas. De uma, tenho uma neurite na perna esquerda. Da outra na mão direita, um sinal que um arame *farpado me deixou. Morava em Jardinópolis (S.P). Com uma latinha de minhocas, uma varinha de bambu jardim e com algumas linhas que a minha mãe me fazia, ia pescar em um córrego conhecido por São Pedro, farturoso de mandis prata que ferroavam dolorido pra capeta. Chovia bem. Água suja. Um bom momento para pescar mandis. Fui lá. Acomodado no barranco como de costume, comecei a pega-los. Ante a fartura e na pressa, não os colocava na sacola—Jogava-os para trás. Uns estavam longe, outros pertinho de mim. É comum de quem pesca no barranco, estar sempre se levantando até para tirar o anzol da boca do peixe. Também eu assim fazia. Numa das vezes que me levantei, ao voltar à posição, distraidamente me assentei em um daqueles que o ferrão foi na minha nádega esquerda até no osso. Fiquei desesperado. Chorava e pulava com o danado balançando pra lá e pra cá. Após muitas tentativas e gemendo, consegui retira-lo A pescaria se encerrou. Capengando com a nádega adormecida, fui para casa. Depois do banho em grande bacia no comum daquele tempo e, das compressas quentes na nádega anestesiada, aqueles mandis ferradores fritinhos e salgadinhos, nos eram um jantar delicioso. Hoje, quando a neurite me acomete, lembro-me daqueles mandis prata que ferroavam dolorido, sem dó.
------ Doutra feita, no mesmo córrego, um puxão nunca acontecido, me deixou tremendo a quase de não mais me manter de pé. Nunca havia sentido aquilo—Ave Maria, que puxão!... Por desaforo, dei-lhe uma ferrada que o joguei nas alturas. Escapando do anzol, fez uma curva pertinho das nuvens para cair bem lá atrás. Enquanto ele fazia aquela trajetória, eu por baixo lhe seguia sem lhe tirar os olhos. Assim que caiu em terra, também eu tropeçando e caindo, já estava me debruçando em cima dele. Que “horror!” Foi a primeira vez que vi um piau gordinho, três pintas, de um palmo e pouquinho mais de tamanho.
------- Pertinho de Jardinópolis, havia uma lagoa conhecida por lagoa da matinha. Muito funda e fria. Uma camada de algas parecendo um tapete verde, lhe cobria toda a superfície. Como sempre nadávamos lá, aquelas algas afastadas por nós, já marcavam o nosso caminho dentro d’água. Uma cerca de arame farpado lhe atravessava separando terras de fazendas. A lagoa sempre estava visitada por mocinhas fazendo horas por lá, vendo os mocinhos também. Querendo me mostra as meninas tão somente, gritei bem alto que iria atravessar a lagoa. Pulei n’água. Não sei se estavam me olhando. Não sei também, como perdi o caminho e me senti afogando sob as algas sem nenhuma fresta por onde eu pudesse respirar. Senti a morte comigo. Por piedade de Deus, com o meu debater de braços, uma fresta se abriu. Tirei a cabeça fora d’água e vi pertinho de mim, aquele arame farpado enferrujado ao qual me agarrei no maior desespero da minha vida. Com a mão direita segurando nele e, com a esquerda afastando as algas, fui sem lhe soltar, mesmo me ferindo, cheguei até o barranco. Poderia ter morrido. Ninguém mais estava por lá. Sempre que olho o meu polegar da mão direita, me vem à lembrança daquela lagoa—COISAS DA MINHA INFÂNCIA.
*Farpado- arame cheio de pontas como espinhos.
(*) Odontólogo; ex-professor universitário