Retomando nossa conversa
Em nossa última coluna conversamos um pouco sobre os principais transtornos de humor que afetam crianças e especialmente adolescentes, falando sobre a depressão e o TAB, Transtorno Afetivo Bipolar, e respectivas formas de tratamento.
Continuando e ampliando nossa conversa, tratamos hoje sobre o projeto de Lei da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo que prevê a proibição do uso de qualquer tipo de aparelho eletrônico com acesso à internet durante o período de aulas, notadamente celulares, incluindo intervalos. O texto parte da constatação de que uso constante de dispositivos durante as aulas tem sido associado a uma diminuição significativa na capacidade de concentração e desempenho acadêmico dos estudantes, além de afetar a interação social. Se sancionada pelo governador do Estado, a lei entra em vigor 30 dias depois de sua publicação. O Ministério da Educação, no mesmo caminho, já prepara o próprio Projeto de Lei Nacional, a ser aplicado em todas as escolas do país.
Caminho da Lei
O texto ainda não prevê como será a fiscalização da aplicação da Lei nas redes pública e privada de educação do Estado, bem como sanções em casos de descumprimento. Do mesmo modo, os gastos decorrentes da implementação da lei na rede pública não estão claros, inclusive no sentido de as escolas disponibilizarem espaços de guarda de aparelhos, já que a posse dos mesmos não é proibida, sendo a restrição apenas para seu uso. Sabe-se apenas que os recursos necessários serão oriundos do orçamento da pasta da educação.
Caminho da Lei II
Apesar de pontos a serem ampliados e detalhados, aspecto natural na construção de qualquer texto ou normas, não há dúvidas dos benefícios decorrentes. É clara e grave a dependência de tecnologia pela qual passam as crianças e adolescentes, exposições e riscos envolvidos no uso imaturo e compulsivo da tecnologia e prejuízos no desenvolvimento emocional, social, afetivo e cognitivo que os jovens vêm vivenciando em função do “entelamento” e abandono do mundo real.
Repercussões práticas da retirada de telas
Algumas escolas de São Paulo já adotam regime disciplinar próprio a respeito, proibindo o uso de smartphones durante a permanência do aluno no espaço escolar. O mais grave e assustador se materializa nos relatos de crianças e adolescentes sobre esse período de transição, que referiram da vivência de “um pesadelo” – transcrição literal- após a proibição inicial, com crises de abstinência entre os jovens após a retirada dos aparelhos das mãos, e o desenvolvimento de sintomas análogos à abstinência de drogas, como irritação, tremores, choro, tristeza, recusa em ir às aulas e tantos outros. Uma parte lamentável da mudança e que chama atenção para a necessidade de mudança de postura das famílias quanto ao uso de tecnologias por crianças pequenas, passa pelos bebês, que no caso das experiências descritas, apresentaram muito choro, recusa a comer e a trocar a fralda sem a tela. Observe a gravidade do que estamos tratando!
Voltando no nosso raciocínio
Em Caminhos da Mente do dia 08/11/24 tratamos sobre o uso, abuso e dependência de tecnologia e o adoecimento mental de crianças de e adolescentes. Trouxemos todos os prejuízos relacionados à demanda, todavia, ainda não havíamos tido contato com experiências práticas de proibição do uso de tecnologia em escolas que não seja para fins pedagógicos ou adaptação para crianças com deficiências. O relato da experiência das escolas de São Paulo que criaram suas normas próprias choca, pois apesar de nossa experiência clínica com o tema, e conhecimentos disponíveis na literatura da área que identificam a tecnologia como a cocaína digital, dado seu grau de dependência e consequências, ainda não havia relatos de abstinência em massa.
Dependente, abstinente e trajetórias do adoecer
No caso das escolas mencionadas, os adolescentes massivamente apresentaram todos os sintomas de crise de abstinência, ou seja, aqueles experimentados quando se retira a droga de um usuário dependente e o mesmo apresenta sintomas importantes, que podem ser graves, inclusive com risco à vida.
Foi relatada a primeira fase, descrita como aquela tipificada por revolta e resistência, irritabilidade, tentativas de burlar o controle, colocando celulares velhos nos espaços de guarda dos mesmos e posse daquele que funciona de fato consigo, dentre diversas outras reações. Observemos: temos uma geração drogada de tecnologia, que não consegue se desligar!
Trajeto esperado, que todavia não deixa de chocar
Temos conhecimento prático e da literatura dos sintomas comuns de qualquer crise de abstinência. Todavia, observar crises coletivas, em massa, neste caso devido à tecnologia, choca. O fato demonstra a gravidade da situação que torna-se de saúde pública, e mesmo legal, no sentido da responsabilidade das famílias, que por falta de percepção, educação em saúde e ou comodismo, tem entregado a droga da tecnologia aos filhos sem nenhum cuidado ou controle. Imaginemos o que é estar em um espaço em que dezenas, centenas de crianças e adolescentes apresentam coletivamente e concomitantemente, crise de abstinência. Terrível, gravíssimo!
Trajeto que choca II
Ainda mais lamentável, grave e chocante do que a condição de crianças e adolescentes, é aquela vivenciada pelos bebês. Na Escola Tarsila do Amaral (SP), que atende crianças da educação infantil e do ensino fundamental I, não é permitido nem passar pela porta de entrada com tablets ou smartphones. Entre os novos alunos, principalmente bebês, o relato dá conta da necessidade de montar um sistema de desmame da tecnologia para que os mais pequenos conseguissem se adaptar ao cotidiano sem telas. Algumas crianças só aceitam comer se estiverem vendo vídeo, sem isso, ela nem olha para o prato. Desse modo, no desmame, o vídeo foi permitido apenas no começo da refeição e logo foi substituído por um brinquedo, como massinha, até ser totalmente eliminado. Trata-se de uma técnica de treino comportamental.
Reflexão urgente, atrasada, grave!
O que chamamos atenção aqui é para a seguinte reflexão: se o bebê já apresenta um grau tão acentuado de dependência, como será seu desenvolvimento de modo amplo na infância e adolescência? Que tipo de adulto estamos produzindo? O que temos feito a respeito? Estamos produzindo uma geração inteira drogada, dependente de tecnologia, banalizando e naturalizando uma situação que não é simples, e que se adiada para tratamento, trará consequência de saúde mental e sociais gravíssimas! O quadro de abstinência individual por si só é grave, e temos dificuldades de enfrentar, imagine quando a situação é coletiva. Mais que isso: como uma geração alienada, com desenvolvimento emocional, cognitivo, afetivo, social conforme dito, conduzirá uma sociedade. Essas são as pessoas que nos sucederão, já pensamos nisso?
Previsões, preocupações e a realidade
Confesso que a experiência das escolas de São Paulo me impactou, pois a prática clínica me mostra a gravidade e complexidade de casos de abstinência inclusive pelos desfechos clínicos que podem ocorrer, o que requer tratamento psiquiátrico indispensável desde o princípio, sendo este associado à psicoterapia. Mais que a abstinência, conforme mencionei, me preocupa o futuro dessa geração que vem sendo banalizado, ignorado. Soma-se a isso, minha vivência como servidor público do setor há 15 anos, ao refletir sobre o curso da demanda caso esta chegue abruptamente à rede pública de saúde mental na condição atual de epidemia de dependência de tecnologia e desmame abrupto. Não temos estrutura para atender a todos. Como sempre digo, situação de caos no campo da saúde mental já vivenciamos, não no sentido negativista da palavra, mas no sentido real do fato, dada a situação epidemiológica e assistencial alarmantes vivenciada pela da área, ainda mais grave entre crianças e adolescentes.
Quem ama, cuida!
Aos pais, mães e aqueles que exercem o papel e função de cuidado das crianças e adolescentes, reforçamos: cuidemos do uso da tecnologia por eles. A dependência se desenvolve debaixo dos nossos olhos e não estamos percebendo, ou estamos negligenciando o fato. Como em qualquer atividade humana, o equilíbrio é essencial. A criança não estuda após chegar em casa horas a fio, indefinidamente, o que justifica passar todo o tempo fora da escola nas telas?
Lembrando o princípio do Amor Exigente, “É porque eu te amo que não aceito!” esse deve ser o tom no processo educacional das famílias, lembrando o que sempre dizemos ao destacar que o contrário do amor não é o ódio, pois este ainda assim é um sentimento. O contrário do ódio é a indiferença, a não preocupação, que sinalizam que o outro não tem valor dentro de mim, que sequer existe emocionalmente para mim.
Como Freud colocava “Em última análise, precisamos amar para não adoecer”. Emendamos acrescentando que Amor é atitude, por isso, ajamos!