Retomando nossa conversa
Em nossa última conversa tratamos do Projeto de Lei da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo que prevê a proibição do uso de qualquer tipo de aparelho eletrônico com acesso à internet durante o período de aulas, notadamente celulares, incluindo intervalos. Detalhamos as repercussões da matéria nas escolas e comportamento de crianças e adolescentes, inclusive diante de experiências piloto de escolas que já adotam a restrição, e as consequências iniciais da mesma em manifestações de abstinência face a retirada da tecnologia por crianças, adolescentes e inclusive bebês.
Conversa de hoje
Na conversa de hoje, nossa intenção é trazer noções sobre o desenvolvimento natural do bebê até os 06 anos, para compreender a importância desse período na formação inicial da personalidade e compreensão da importância da vivência adequada das etapas, visando evitar atravessamentos que gerem comprometimentos na compreensão de normas, regras, valores e frustrações em situações análogas à da proibição do uso de tecnologias nas escolas por alunos. O foco consiste em demonstrar a importância das experiências que compõem o desenvolvimento natural para a formação da personalidade, para refletir os prejuízos prováveis, quando essas experiências são substituídas por uma única: a tecnologia
Desenvolvimento Típico: do bebê aos 02 anos de idade
Crianças e adolescentes têm em seu desenvolvimento objetivos a serem alcançados de acordo com cada fase de desenvolvimento. Observemos ainda no bebê a fase de desenvolvimento após os 06 meses quando o mesmo começa a rolar, apoiar-se de barriga para baixo, controlar o pescoço, e logo após sentar-se, preparando-se para engatinhar e dar passinhos. A mudança no comportamento motor ou físico, associada à introdução de alimentação adicional ao leite materno ou artificial, sinaliza avanços nos marcos de desenvolvimento, e demonstra que o bebê está crescendo.
Igualmente à fase inicial do bebê, quando adquire a marcha, a criança avança do primeiro para o segundo ano de vida, e passa a explorar o ambiente. Inicia-se a fase em que a família precisa adaptar o ambiente, tirando do alcance das mãos da criança entre 01 e 02 anos tudo aquilo que represente perigo, como objetos que possam quebrar, cortantes, tampar tomadas e por aí vai. Nesse período, a mamãe deixa de ser o único mundo que a criança conhece, e ela passa a explorar o ambiente, preparando-se para a fase de socialização, que inicia-se a partir dos 02 anos.
Desenvolvimento típico II: dos 02 aos 03 anos
Conhecida em estudos canadenses como “The Terrible Two”, ou Os Terríveis Dois anos, a fase dos 02 aos 03 anos pode ser marcada por muitas birras, o que é relativamente simples de compreender. Vejamos: quando nasce, o bebê e sua mamãe vivenciam o que chamamos de simbiose, ou seja, um passa a ser o mundo do outro, como se fossem um só. A mamãe interrompe sua rotina anterior à gravidez e passa nesse primeiro estágio, a viver integralmente para seu bebê e provimento de suas necessidades. Se tem fome o bebê, chora, é amamentado. Se está com a fralda suja, faz o sinal de choro, é trocado. Se tem cólicas, chora, é acalentado. Esse processo de satisfação integral inicial e natural, leva o bebê, dotado de psiquismo ainda inicial a desenvolver o sentimento que chamamos de onipotência, ou seja, deve ser atendido integralmente em suas necessidades e desejos. Ocorre que avançando no desenvolvimento, o bebê vai naturalmente se descolando da mãe no desenvolvimento natural, quando passa a engatinhar, andar e explorar o ambiente. Embora mais desenvolvido, ainda não vivenciou frustração, e esse é o princípio da birra dos 02 aos 03 anos. Quando frustrada, e não habituada à experiência, a criança que vai deixando de ser bebê vivencia o primeiro não de sua vida, e explode em raiva, negação do limite, diante de uma frustração totalmente divergente do provimento integral.
Frustração: porta para desenvolvimento da personalidade
A frustração que se inicia entre os 02 e 03 anos é essencial para o desenvolvimento da personalidade da criança e do futuro adulto. Quebrando a onipotência inicial do desenvolvimento, ela mostra que nem tudo podemos, reforça as regras e inicia o marco da vivência das regras, normas e processos sociais naturais. É a partir da frustração que o indivíduo vai adquirindo noção de que não pode tudo, e que deve ajustar-se às regras e normas. Esse período dos 02 aos 03 anos prepara para a fase de relacionamento social que se inicia aos 03 anos, é por isso inclusive, que as crianças em momentos sociais anteriores eram inseridas na escola por volta dos 03 anos, pois já estavam com a preparação inicial para relações vivenciada.
Egocentrismo e socialização
Por volta dos 03 anos, ainda prevalece o egocentrismo infantil. Observe que se for feito um amontoado de brinquedos no centro de uma sala e colocadas as crianças ao redor do mesmo, e dado o comando de usarem os brinquedos, cada uma pegará seu brinquedo e brincará sozinha, nesse momento inicial, pois ainda vivencial o egocentrismo. Nesse período, é comum a criança arrancar brinquedos da mão de outra, assim como se desentenderem sem ter noção do fato em si, pois a criança busca o provimento de sua necessidade, ainda egocêntrica, sem enxergar a necessidade do outro. É com a estimulação à interação, convivência, brincadeiras juntas, que a fase de desenvolvimento social será inaugurada e desenvolvida após os 03 anos, preparando a criança para outros estágios de desenvolvimento.
Socialização e valores
A partir dos 03 anos, experimentando as experiências de divisão de brinquedos, vivência de normas, com o desenvolvimento cognitivo em processo e já vivenciando experiências emocionais grupais para além de si, a criança avança no desenvolvimento social e passa a ter o cognitivo estimulado. É nesta etapa que se inicia a apresentação de cores, formas geométricas, números, letra inicial do nome, ampliando o repertório cognitivo, em preparação para a escolarização.
Observemos que inicialmente, enquanto bebê as necessidades básicas (alimentação, higiene e conforto) são o centro do desenvolvimento. Após, por volta de um ano, a exploração do ambiente. Com 02 anos, experiências sociais, frustração e capacidade de divisão. Com 03 anos, repertório cognitivo.
Desenvolvimento Cognitivo
A etapa dos 04 e 05 anos é marcada pela iniciação da alfabetização, período em que as atividades lúdicas mediam o aprendizado das letras do nome, escrita do primeiro nome, percepção de dias da semana, nome da escola, da professora, números, e assim por diante. A criança tem seu repertório cognitivo ou intelectual ampliado, passa a reconhecer palavras, formar frases, se interessa em ler outdoores na rua, fachadas de comércio e passa a despertar e explorar novos mundos internos e externos.
Importância da vivência completa de cada etapa
Observemos que cada etapa aqui descrita leva ao desenvolvimento de esquemas ou habilidades que são pré requisitos para o desenvolvimento da fase subsequente. Se esse desenvolvimento é quebrado por fatores externos ou substituído por outros elementos como a tecnologia, ocorre um prejuízo naquilo que seria natural, e a criança passa a ter o desenvolvimento tumultuado ou empobrecido. É sob este aspecto que consiste o alerta de Caminhos da Mente. Se a criança tem um desenvolvimento inadequado ou incompleto, esses prejuízos ou faltas, somar-se-ão ao longo do tempo, impactando na adolescência e mesmo vida adulta. Por que percebemos adultos resistentes ao não, difíceis de relacionamento, explosivos, impulsivos, compulsivos, instáveis em empregos e relações, por exemplo? A resposta certamente encontra-se na vivência incompleta ou não vivência da frustração e socialização da primeira infância, aqui descritos.
Preparemos para a vida!
A dependência da tecnologia ou a incapacidade de ficar sem a mesma, objeto da coluna anterior e as graves consequências decorrentes da abstinência da mesma, que acarreta prejuízos na socialização, desenvolvimento afetivo e cognitivo na adolescência são consequências práticas parentais falhas, conforme destacamos em Caminhos da Mente do dia 06/11/24. Por isso, não deixemos de viver e estimular o desenvolvimento natural de nossas crianças. Estamos produzindo a geração que nos sucederá socialmente no trabalho e demais espaços sociais. Precisamos prepará-los para isso.
Como sempre dissemos o amor consistente, aquele que não é permissivo em excesso, nem sequer punitivo, o amor equilibrado, é sempre um bom caminho. Presentes, não substituem presença, e preço, é sempre diferente de valor. Pensemos nisso!
“A arte de ensinar é a arte de ajudar a descobrir”.
Mark Van Doren