Retomando nossa conversa
Na coluna anterior, tratamos sobre o desenvolvimento infantil até os 06 anos, e a importância desse período na formação inicial da personalidade, passando pela compreensão da importância de cada etapa, visando evitar atravessamentos que gerem comprometimentos na compreensão de normas, regras, valores e frustrações em situações análogas à da proibição do uso de tecnologias nas escolas por alunos, anteriormente tratada. Lembramos, na ocasião, a importância das experiências que compõe o desenvolvimento natural para a formação da personalidade, para refletir os prejuízos prováveis, quando essas experiências são substituídas por uma única, a tecnologia.
Ampliando a conversa
Assim como tratamos do desenvolvimento típico, natural ou normal da criança, é natural pontuar também os elementos componentes da adolescência e sua função. Iniciamos pela infância destacando a analogia que remete ao desenvolvimento humano enquanto uma obra, uma edificação, na qual cada etapa é fundamental para se evitar problemas nas etapas subsequentes e na estrutura como um todo. Se falhamos em uma etapa dessa obra, desse desenvolvimento, as consequências são naturais, implicando no resultado final, ou seja, a pessoa que está sendo desenvolvida.
Chegando na adolescência
Assim como a criança pode ter prejuízos em suas etapas de desenvolvimento caso alguma delas não seja vivenciada adequadamente, ou substituída por elementos que não fazem parte da mesma, a adolescência segue o mesmo fluxo. Pontuamos a infância em intenção reflexiva, destacando, todavia que o desenvolvimento é um conjunto, um constructo interdependente em todas as suas etapas, até a idade adulta, e mesmo o envelhecimento. Tudo que amealhamos na jornada tem função, e as faltas, consequências.
Função da adolescência
Conforme já discorremos em outras edições de Caminhos da Mente, a adolescência é marcada como um período de transição entre a infância e a idade adulta. Por todas as suas transformações, iniciadas na puberdade, traz inúmeros desafios, afinal de contas, o indivíduo vai deixando de ser criança, mas ainda não é adulto. O que se é então? O corpo começa a mudar, surgem pelos, estirão de crescimento, saltos em números de roupas e sapatos, aprofundamento de relacionamentos sociais e afetivos, desenvolvimento sexual, aspecto físico da pele, que pode apresentar acne, a voz muda no caso dos meninos e mamas nas meninas, além de outras questões físicas. Emocionalmente, a mudança de identidade decorrente das mudanças físicas descritas é importante. Tem-se maior e relativa liberdade, uma vez que a autonomia tende a se desenvolver, mas ainda não se tem autonomia total, pois não se é adulto. Estamos assim, com um pé em cada canoa: não sou criança, tampouco adulto, tenho alguma autonomia, mas não plena. Quem sou, ou quem quero me tornar?
Mudanças e evoluções necessárias
Diante de tantas mudanças, fica evidente que essa fase, tipificada como uma transição tem a função de preparar para a vida adulta. As mudanças que se iniciam pelo corpo puxam mudanças emocionais, e o adolescente inicia uma busca pelo seu novo eu. Esse eu inclui aspectos fundamentais de identidade, que passam pelo amadurecimento cognitivo, escolha profissional, ampliação da autonomia, desenvolvimento afetivo-sexual conforme mencionado, e o aspecto crucial: a capacidade de resolver problemas de modo equilibrado, assertivo.
Capacidade de resolver problemas
O que diferencia uma criança de um adulto é a capacidade de resolver problemas. Passamos a não depender exclusivamente de nossos pais como na infância, e a assimilar que passamos a ser cada vez mais responsáveis pela nossa vida, assim como a compreender há consequências para tudo que for feito, inclusive para aquilo que deixar de ser feito. No caminho da assimilação da relação ação e reação, a frustração diante de situações cujo desfecho pode não sair conforme o planejado, e elemento fundamental ao desenvolvimento da noção eu e o outro, assim como para crescimento emocional.
Frustração para além do insucesso
Frustrar-se é natural, pois ajuda a compreender onde se falhou, e quais as mudanças necessárias nos processos, seja de qual natureza forem estes. De uma receita culinária, uma baliza no trânsito, uma equação matemática, uma palavra mal expressada, aprendemos o que fazer com os erros, e principalmente o que não fazer. Esse é o papel da frustração, que jamais se restringe a apenas expressão de fracasso, insucesso, mas sim em indicador de necessidade de correção de rumos, que serve para a vida toda. É essencial educar para a frustração e crescimento, caso contrário, produzimos pessoas imaturas, que negam a realidade, projetam sobre o outro suas responsabilidades e erros, que podem se tornar levianas, cruéis, emburradas, assim como a criança que esperneia negando o limite.
Como se aprende sobre frustração?
Como tudo na vida, há referências, mas não há receitas prontas para tudo, uma vez que somos singulares, assim como as situações, e a tarefa consiste em se apropriar de estratégias para lidar com os desafios da vida. Se o desfecho de uma situação não foi o desejado, se não deu certo, a tarefa consiste em pensar o que fazer diferente, para obter resultados diferentes. Parece simples, mas na prática, embaraços são muitos. Sair do lugar de dor por dor, de transferência de responsabilidades e carregar a própria mochila da vida não é desafio tão simples. Aceito o erro, assumo as mudanças necessárias e procuro recursos para fazê-las, todavia, a visão nem sempre é clara e simples, é então que entra em cena a família.
Família, frustração e desenvolvimento
A grande questão consiste em quem media o desenvolvimento da criança e do adolescente. Se o mesmo se encontra em um período de crescimento, aprendizado e preparação para a vida, quem está educando e ensinando sobre os desafios e necessidades? Entra em cena o papel pessoal e intransferível da família como a responsável por apresentar e mediar as relações de mundo. A família tem o papel de auxiliar na construção ou aquisição dos esquemas que ainda me faltam para me preparar para a vida e a escalada natural de complexidades e desafios que ela traz. Se deixarmos de educar e ensinar, quem o fará? A quem estamos tentando transferir essa responsabilidade pessoal e intransferível como dito?
Famílias cansadas e sem tempo
É compreensível e natural o cansaço e falta de tempo dos adultos diante de rotinas duplas ou triplas de trabalho, face às mudanças sociais e apelos de consumo, de ter. Todavia, não podemos nos esquecer de que precisamos também ser. O grande desafio consiste no equilíbrio da distribuição dos planos, metas, objetivos da família. O que buscamos como família? Somos um todo sistêmico que por se amar cuida uns dos outros, se ajuda com empatia e afeto, ou apenas habitamos o mesmo espaço, a mesma casa? A baliza do que somos, ou o que queremos ser juntos enquanto família é essencial, sob pena de nos perdermos uns dos outros, e vivermos como conhecidos dentro de um mesmo ambiente, com laços de ligação frouxos.
Tecnologia substituindo relações essenciais
Quando a família está muito ocupada, é comum que o celular, computador, TV e outros meios tecnológicos sejam formas de entreter a criança, o que todavia, se não for equilibrado com outras atividades, pode se tornar um hábito desequilibrado, nocivo, caminhando para compulsão e dependência que se arrasta para a vida. Lembram-se dos bebês que se recusavam a comer e trocar fraldas após a retirada de tecnologia em escolas de São Paulo que mencionamos em colunas anteriores? Se a dependência começa tão cedo, qual é o resultado provável? Certamente ela engolirá, ou substituirá os demais aspectos essenciais do desenvolvimento, implicando nas consequências já descritas.
A Vida é diferente de jogos e redes
Os fatos da vida não são possíveis de serem reiniciados, pulados de fase, bloqueados, desbloqueados, excluídos. Não é possível comprar armaduras e ferramentas especiais no cartão de crédito como nos jogos. Se me acostumei assim na vida cada vez mais digital, o que acontece diante dos insucessos da vida? Eis o papel da vida mediada, equilibrada, e da frustração já descrita. Não é responsável, saudável, substituir convivência com familiares e pares, conversa, educação, exercícios físicos, passeios, tempo de estudo, rotina organizada por um único item: a tecnologia? Conseguimos perceber a desertificação de repertório de vida que se tende a produzir quando se reduz a vida apenas à tecnologia? Trata-se de uma troca de múltiplos elementos essenciais por um único, que produz uma anemia da vida.
Não se trata de oposição
Quando tratamos e repetimos os prejuízos atualmente decorrentes do uso de tecnologia por crianças e adolescentes, não se trata de sermos contra a mesma. De modo algum. Trata-se de cuidado e alerta diante da observação da sociedade e da clínica em saúde mental, as quais vivenciamos na rotina e que demonstram mudanças de modos de vida com consequências importantes e graves sobre o desenvolvimento de pessoas. A tecnologia tem sua inegável contribuição inclusive na educação ao facilitar pesquisas, encurtar distâncias facilitando a comunicação, mas não pode resumir e reduzir a vida. Todas as experiências vividas são essenciais, e abandoná-las, é construir desertos, vazios, solidão, incapacidade de lidar com a vida natural, e real.
Caminhos possíveis
Diante das discussões iniciais, pautadas na literatura científica da área e na prática clínica deste colunista, são sinalizadas as possibilidades para um desenvolvimento saudável de nossos jovens. A palavra crucial que abre a primeira picada para trilhar essa estrada é o equilíbrio. Distribuição saudável de tempo e rotina de AVD, Atividades de Vida Diária, é o primeiro passo. Nada de excessos ou faltas, pois estes sinalizam desequilíbrios. Atividades demais geram fadiga, cansaço, e uma única atividade produz tédio, compulsão e busca de mais e mais dedos nas telas e teclas.
Uma rotina equilibrada inclui horário de escola e de descanso, contribuição nas rotinas e tarefas domésticas e do lar, estudos dos conteúdos escolares, esportes, cultura (música, poesia, teatro são excelentes recursos para expressão emocional), alimentação adequada, convivência familiar e com pares. Nada de sermos passivos, moles demais e tender a desistir e procrastinar, nem o ponto extremo, do funcionamento agressivo, tendendo a tudo atacar e ganhar no grito. A palavra de ordem deve ser sempre, equilíbrio, sem esquecer que crescimento e evolução não dão saltos, a obra deve ser feita do alicerce, passando por tijolo a tijolo, e a decoração e festas vem mais à frente, depois de cumpridas as etapas necessárias. Sigamos com afeto, esperança, construindo resiliência, buscando o melhor de cada um e de todos, juntos, sempre!