Nesta edição, a Coluna “Conexão Urbana!” se distancia do habitual tom informativo e opinativo para propor uma reflexão profunda sobre um tema urgente: o poder como droga silenciosa e seu impacto na saúde mental de todos nós. Em meio ao setembro amarelo, convidamos o leitor a olhar para além das manchetes e das disputas cotidianas, reconhecendo como relações de controle, opressão e manipulação podem adoecer indivíduos e comunidades. Trata-se de um convite ao despertar de consciência, com finalidade de estimular o diálogo e lembrar que cuidar da mente é também zelar pela saúde da sociedade.
A droga invisível
Quando pensamos em drogas, logo surgem imagens de álcool, cigarro, entorpecentes. Mas há uma substância ainda mais letal, que não está nas ruas escuras, mas dentro de casas, empresas, escolas e “palácios de governo”: o poder. Ele não se cheira, não se fuma, não se injeta. Porém, intoxica silenciosamente e cria dependência em quem o consome. O poder, quando mal administrado, é uma droga invisível que corrói vínculos e destrói comunidades inteiras.
O vício que não poupa ninguém
No atual cenário, o povo brasileiro precisa compreender melhor o processo que conduz à desgraça coletiva. Para isso, é importante reconhecer que o poder é viciante porque oferece a ilusão do controle absoluto. Quem o possui quer sempre mais, e quem sofre seus efeitos, muitas vezes, internaliza a opressão ou a normaliza. Ao contrário de outras drogas, ele não destrói apenas o usuário, mas todos ao redor. A ânsia por mando e domínio pode transformar até mesmo relações de cuidado em disputas silenciosas. O que poderia ser liderança torna-se tirania cotidiana, uma doença coletiva.
O campo minado dentro de casa
Famílias, que deveriam ser portos seguros, muitas vezes se transformam em arenas de batalha e controle. Pais e mães manipulam os filhos não só com chantagens emocionais, mas também com a ameaça de violência física, convertendo a autoridade em instrumento de medo. Crianças e adolescentes, carentes de uma educação baseada no diálogo, passam a disputar o poder dentro de casa: recusam-se a tomar banho, a realizar tarefas escolares ou a cumprir obrigações simples. A residência, que deveria ser espaço de afeto e aprendizado, torna-se um campo minado de forças opostas, onde vínculos se desgastam e a convivência se deteriora.
Autoridade que sufoca na escola
A escola, que deveria ser espaço de liberdade e descoberta, tornou-se terreno de disputas de poder. Fala-se em professores que, blindados por uma postura tirânica, sufocam perguntas e criam ambientes autoritários onde a obediência substitui a criatividade. Porém, se esquece que o problema na educação brasileira não é unilateral: muitos alunos, amparados pela normalização da indisciplina e do desrespeito, impõem suas vontades, confrontam professores e deterioram a convivência com colegas. A rebeldia estudantil tem sido determinante para uma realidade em que a sala de aula perdeu sua essência e deixou de ser um lugar de aprendizado para se transformar em uma arena simbólica, intoxicada pela ânsia de controle de todos os lados.
Bullying: o poder cru
No cotidiano das escolas de Uberaba, assim como em todo o Brasil temos acompanhado o crescimento do bullying, um fenômeno violento que revela o poder em sua forma desnuda. O agressor não é forte, mas covarde, e a droga que o motiva é a sensação obtida ao provocar a humilhação alheia. Cada risada cúmplice é mais uma dose que o vicia. Muitos se embebedam com a própria arrogância enquanto impõem para a vítima o fardo de carregar cicatrizes que mesmo invisíveis são capazes de causar uma dor que pode se prolongar por toda a vida. Nesse ciclo, a escola deixa de ser espaço de crescimento e se torna palco de crueldade alimentada pelo poder.
(Imagem ilustrativa: Leilane Vieto)
O amor transformado em cárcere
Nos relacionamentos afetivos da atualidade, o poder atua como um veneno silencioso. O ciúme possessivo se disfarça de cuidado, quando a bem da verdade assume a condição de instrumento de controle. “Não sai assim”, “não fala com ele”, “me mostra suas mensagens”: estas são apenas algumas das frases que podem revelar um contexto de prisão emocional. O amor, um sentimento que deveria valorizar a liberdade e parceria, converte-se em território de dominação. Quando o poder entra pela porta e impõe normas que condicionam a relação para a satisfação unilateral, a confiança escapa pela janela.
Dependência emocional como sintoma
A dependência emocional é um dos sintomas mais sutis e devastadores do vício em poder. Expressões como “Sem mim, você não é nada” podem mascarar um processo que remete à carência afetiva. A motivação? Não é amor, é abstinência de poder. Quem diz isso não deseja parceria, mas reféns. E quem cede aos argumentos insólitos daquele que se empodera com a consequência desta dinâmica corre o risco de se tornar prisioneiro de uma relação intoxicada, na qual a autoestima é sacrificada em troca de falsa segurança.
A epidemia social do poder
O poder, ao contrário da escalada de outras drogas, espalha-se em cadeia. O trabalhador humilhado pelo superior descarrega no estagiário. O filho controlado em casa impõe domínio ao colega na escola. Cada elo da corrente reproduz a lógica da opressão. Trata-se de uma “substância” capaz de alcançar a toda uma sociedade, que se contamina com pequenas doses diárias desse veneno. Estamos diante de uma epidemia invisível, mas devastadora, que se infiltra nos espaços mais íntimos e cotidianos.
Diferente de outros vícios
O viciado em álcool destrói a si mesmo, afundando em sua própria solidão. Já aquele cujo o “ópio” se materializa no poder destrói tudo ao seu redor. Claro que as consequências também o alcançarão, pois, no fim, restar-lhe-á apenas um trono vazio, construído sobre escombros emocionais e sociais. Esse “usuário” acredita ter vencido, mas está sozinho em seu castelo de areia. A tragédia é dupla: ele perde os outros e, sem perceber, também perde a si mesmo.
A política como território do vício
Na política, o poder atinge sua forma mais perversa. Cargos que deveriam servir ao coletivo tornam-se patrimônio privado de quem os ocupa. Mandatos viram extensão de vaidades, e instituições se transformam em palcos de disputas pessoais. Quando o vício do poder domina o cenário público, a democracia adoece. O interesse comum se perde em meio a manobras de autopreservação e vaidade.
O preço da política intoxicada
Quando o poder se converte em vício, ele não corrompe apenas os políticos, mas também os eleitores. Movidos por discursos ideológicos vazios, muitos transformam as redes sociais em campo minado. Defendem “times” políticos como se fossem clubes de futebol. Nessa lógica de torcida, pouco importa a ausência de propostas ou resultados: o que vale é a vitória sobre o adversário. O efeito é devastador. Em vez de cobrar compromissos com o bem comum, a sociedade legitima o injustificável, aplaude a corrupção e alimenta rivalidades que paralisam reformas urgentes. No fim, o custo desse fanatismo recai sobre todos: hospitais que não funcionam, escolas sucateadas e uma democracia reduzida a espetáculo de vaidades.
(Imagem ilustrativa: Leilane Vieto)
Corrupção: estágio avançado do vício
A corrupção é o sintoma final dessa política que envenena, imuniza contra a racionalidade e segrega em grupos antagônicos aqueles pelos quais os governantes deveriam trabalhar. Quanto mais poder o viciado acumula, mais doses precisa. Por isso o esforço ilimitado de alguns para manterem-se de forma perpétua no cargo que o entorpece. O dinheiro público, os favores, as influências e até mesmo a violência armada passam a ser usados como substâncias de manutenção do vício. O corrupto não rouba apenas valores financeiros: rouba dignidade social, mina a confiança coletiva e deixa um rastro de descrença. É a overdose de uma política que mata.
Onde termina o amor e começa o poder
A pergunta central permanece: em que momento o amor, o cuidado ou a ética são substituídos pelo desejo de poder? Essa reflexão serve para lares, escolas, relacionamentos e também para a política. Identificar esse limite é essencial para interromper o ciclo de abusos. O silêncio diante do poder disfarçado é conivência. Reconhecer a intoxicação é o primeiro passo para a cura coletiva.
O alerta para a sociedade
Enquanto o poder continuar se equiparando a uma droga, viveremos em ambientes emocionalmente adoecidos. Chefes que oprimem, políticos que corrompem, parceiros que controlam — todos são sintomas de uma sociedade intoxicada. Mas existe um caminho alternativo: resgatar o diálogo, a empatia e a ética como verdadeiros antídotos. O alerta é urgente: comunidades só florescem quando a sede de poder é substituída pela vontade genuína de servir, cuidar e valorizar o outro. Este setembro amarelo nos lembra que a saúde mental coletiva depende da responsabilidade de cada indivíduo em construir relações saudáveis e respeitosas.
Desintoxicar-se é possível
Desintoxicar-se do poder não exige fórmulas mágicas, mas sim coragem para perceber quando buscamos controlar em vez de dialogar; para admitir quando aceitamos abusos em vez de exigir respeito; e, acima de tudo, para substituir domínio por amor, mando por parceria, vaidade por serviço. O poder, quando exercido com consciência, torna-se ferramenta de construção. Mas, quando se transforma em vício, destrói tudo — e isso inclui nossa saúde emocional e coletiva. Reconhecer, enfrentar e transformar essa dinâmica é um ato de audácia positiva que salva vidas.
Frase
“O poder é mais tóxico que o álcool e vicia mais do que as drogas.” (John Stott)