Muito chato
Há meses venho resistindo à tentação de escrever sobre o “mundo chato” em que estamos vivendo.
O “mundo está muito chato”, perdeu parte da alegria que emanava das coisas simples.
Apanhar uma manga sabina madura, no pé, era uma farra. Pura alegria. E balançar a galhada para que caíssem aos montes. Nem me fale!
Os pés de jabuticaba pareciam ser pretos na época da fruta. Elas os cobriam por inteiro. Somente as folhas ficavam à mostra.
Que alegria era escolher os “calongos” no próprio pé, e a cautela de não comer o caroço (um conselho das mães e das avós, para não recorrer a laxante depois).
As frutas estavam em todos os quintais, para a alegria da molecada.
Os parquinhos de diversões, de uns poucos brinquedos, faziam a festa da moçada nas periferias.
Como era romântico oferecer uma música “para a garota do vestido amarelo”, mantendo-se o galanteador no anonimato (hoje isso pode parecer idiotice, mas na época era pura fantasia). O autofalante anunciava o galanteio.
Muitas famílias nasceram ali, no parquinho de diversões (esse nascer significava iniciar um namoro, pegar na mão, ter permissão da moça para ir à casa dos seus pais e pedir permissão para o namoro, e não “ficar”).
Naquele momento, nada trazia mais felicidade que o “sim”.
Ninguém denunciava o barulho da festinha do vizinho (que era feita sem trancar a porta da frente, para que os amigos e conhecidos fossem entrando).
Ninguém brigava por uma bobagem qualquer. Quando acontecia, o “ficar de mal” era por algumas horas ou dias.
Ninguém era assaltado em sua própria casa ou no bar. Pouquíssimas pessoas matavam outras. Quando acontecia, de tão raro, toda a cidade ficava sabendo (e olha que não existia rede social, em que também as mentiras são produzidas e andam na velocidade do pensamento, e pouco importa a quem magoarão).
No mundo antigo, posso estar enganado, mas parece que havia menos chatos.
Hoje eles estão em todos os lugares. E proliferam em velocidade espantosa. Cuidam mais das vidas alheias do que das próprias.
Palpitam mais, sem nenhuma responsabilidade, do que dão soluções, “apesar de saberem tudo”.
Onde quer que você vá, lá estão eles. No cinema, no shopping, no estádio de futebol, no trabalho, nas reuniões e até nos templos.
Ô coisa chata!
No mundo chato, não se pode namorar na praça ou sentado no muro da frente da casa.
Para sentar-se em um muro, hoje, só recorrendo a uma escada. Parece que nenhum deles tem menos de um metro e 80.
E, talvez, nem com escada, pois muitos estão com concertina no seu topo ou com cerca elétrica.
Se alguém se arriscar a namorar na praça, corre o risco de ser assaltado ou aparecer nas redes sociais por “atentado violento ao pudor” (aquele que chega a todos os lares nas novelas da noite e, muitas vezes, são assistidos em família).
Sempre tem alguém filmando. Filmam tudo. O que é da sua conta, mas, principalmente, o que não é.
Isso torna o mundo chato.
Acabou-se a liberdade.
É muita gente de celular na mão para “documentar” um tropeço de alguém, um acidente.
Aconteceu, vai para a internet.
E quase sempre o vídeo é acompanhado de uma série de comentários distorcidos da realidade, feitos para ferir, para machucar.
E ainda tem aqueles que gostam de mostrar pessoas mortas.
Alguns até priorizam filmar alguém agonizando ao detrimento do socorro de que precisa.
Vão filmando e dizendo “Ó, meu Deus!”.
Se no passado os “paparazzi” infernizavam as celebridades, no mundo chato somos todos infernizados.
E é um mal contagioso.
Vai passando de um para outro.
Viramos todos atores de um mundo chato.
Há os que se divertem com isso, é verdade.
Quanto pior é a cena filmada, parece que mais se satisfazem com a “obra”.
Neste mundo chato, não pode se sentar no portão de casa com um celular, um tablet ou um computador na mão.
É querer ficar sem ele.
E ainda ganhar um sermã onde já se viu ficar na porta de casa desse jeito?
Dependendo da hora e do lugar, tomar uma cerveja no bar, numa roda de amigos, nossa!, que perigo.
Os assaltantes brotam do nada.
Até os assaltantes perderam o “romantismo”: estão armados até os dentes e gostam de espancar, humilhar suas vítimas indefesas.
Andar a pé fora do centro, onde o movimento é maior, que perigo.
Nesse mundo chato, lá está o bandido à sua espera. Parece que ele sabia que você passaria por ali.
No mundo chato, todo mundo anda desconfiado.
Vê-se maldade em tudo, e ela realmente está nos rondando o tempo todo.
Mas, como celebrava Hugo Rodrigues da Cunha, “é preciso acreditar no contágio do bem”.
A transformação passa por cada um e por todos nós.
Sejamos todos atores no teatro transformador de comportamentos.
Façamos cada um a autocrítica necessária ao exercício diário das boas práticas.
Sejamos todos um pouco melhores, que construiremos o mundo próximo dos sonhos.