FALANDO SÉRIO

Doutrinação nas escolas? A minha foi para a vida!

Wellington Cardoso
Publicado em 07/05/2021 às 21:20Atualizado em 18/12/2022 às 13:37
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François Ramos – Redator Interino

Infelizmente, a polarização ideológica que impera no País foi parar na educação. Professores vêm sendo acusados de doutrinação política e pressionados por movimentos conservadores, que desejam impor o que pode ou não ser dito em sala de aula. Trata-se de um modelo “democrático” em que a liberdade é garantida desde que não se critique quem está no poder. A verdade é que desejam colocar um “cabresto” eleitoral exatamente como o que existiu no Brasil dos coronéis.

Não tenho dúvidas que existem algumas exceções neste sentido. Principalmente em universidades públicas, espaço em que não é raro se verificar a existência de instrumentos e práticas de “doutrinação política e ideológica”. Paredes pichadas com frases de efeito ou pinturas de líderes contraditórios na história da humanidade é cena já vista por muitos.

Entretanto, justiça seja feita, essa não é a regra. Cursei o Ensino Fundamental e o Ensino Médio na rede pública de ensino. Tive curtas passagens pela E.E. Lauro Fontoura (1ª série – 6 meses) e E.E. Gabriel Totti (8ª série – 6 meses), todo o restante da minha vida escolar foi na E.E. Frei Leopoldo de Castelnuovo.

Se eu disser que a minha passagem por essas três escolas estaduais de Uberaba não me expôs à doutrinação, estarei mentindo. Afinal, doutrinar é um ato de catequese. Sua finalidade é incutir uma doutrina ou conjunto de valores. Isso realmente aconteceu. A escola era um espaço democrático que nos “doutrinava” para uma vida ética e comprometida com a cidadania, o que exigia desenvolver a nossa autonomia para protagonizar a própria história.

Na primeira série, tive muita dificuldade em ser alfabetizado. Passei por três professoras diferentes em seis meses. Dona Iracema, um nome que nunca esqueci, jamais desistiu de mim. Ela me ensinou o valor do estudo e da persistência para conseguir crescer: “Já imaginou como será bom quando você puder ler e entender sozinho as estorinhas dos gibis que você tanto gosta?”. Era o estímulo que me faltava. Quando me transferi para o Frei Leopoldo, já cheguei por lá lendo. “Tia” Valéria aumentou a carga de atividades e nunca mais tive problemas com leitura na vida.

Na rápida passagem que tive pela E.E. Gabriel Totti, na 8ª série, alguns exemplos me marcaram para sempre. A professora de Matemática, Célia, dava aula na rede pública com o mesmo empenho que entregava numa das escolas particulares mais caras da cidade: “Quero ver muitos de vocês entrarem pra faculdade!”, dizia ela (sim...naquela época conquistar uma vaga no vestibular não era nada fácil).

Dona Diná, em Português, explicava a importância dos clássicos da literatura e como eles eram fundamentais para a nossa formação. Sempre deixou claro que, embora a linguagem pudesse não agradar de imediato, aqueles livros enriqueceriam nosso vocabulário e nos ajudariam a provar que cultura não é algo que vem de berço, deve ser conquistada. Na gestão do Gabriel Totti, as irmãs Ani e Iná demonstravam como as limitações estruturais da rede pública poderiam ser “dribladas” com muito carinho e dedicação para alcançar a tão sonhada qualidade na educação.

Já na Escola Estadual Frei Leopoldo, onde passei dez anos da minha vida, são tantas histórias de “doutrinação” que falta espaço na coluna pra contar todas. Então, peço licença para contar apenas algumas. A primeira com uma pessoa que ainda hoje segue presente na minha vida e nas minhas orações, a professora e eterna diretora Edna Idaló. Mulher fantástica, que sempre cuidou dos alunos com o amor típico de um coração de mãe.

Dona Edna cobrava disciplina, atenção e dedicação em tudo o que eu fazia. Nada passava em branco por ela. Percebia até mesmo o dia em que estávamos com a saúde ruim (por mais discreto que fosse o sintoma), de mau humor, tristes ou de coração partido. Sempre nos chamava a uma conversa “sem propósito”, cujo objetivo era mostrar que a vida podia ser melhor. Tornou-se a minha principal referência para nunca desistir e inspirou a frase pela qual meus ex-alunos lembram-se deste humilde mestre: Sempre em frente!

Aliás, a equipe de gestão da dona Edna tinha outras feras. Mércia e Vanda Maluf sempre davam um jeitinho de nos colocar pra frente: “Já pra sala de aula, menino”, “tá fazendo o quê pelos corredores?”, “posso saber o motivo do passeio?”. Apesar das tentações extraclasse, elas conseguiam nos colocar no caminho certo e muito contribuíram com a nossa evolução pessoal.

Assim como a querida Edna Idaló, outros mestres da Escola Estadual Frei Leopoldo se tornaram amigos para uma vida toda. Sandra Gabriel é uma dessas “pessoinhas” que a gente guarda no coração. Solidária e muito risonha (fora na hora de mandar a gente “calar a boca” na aula de Mecanografia...rsrs), estava na linha de frente sempre que um aluno precisava. Era professora, assistente social, psicóloga e ainda emprestava a casa “praquele bando de gente” comemorar o aniversário de colegas mais carentes.

Hoje colega de profissão na advocacia, Walder Alves Ferreira foi meu professor de História no “Freizão”. Pensa num “cabra brabo”! Aprendi com ele a nunca começar um texto com eu entendi...se não tivesse entendido mesmo. Nunca esqueci uma apresentação oral em que eu “travei” e ele, com meu resumo nas mãos, disse: “Aqui você falou que entendeu. Não entendeu? Então não pode dizer isso”. Dali pra frente, fiquei mais atento ao uso da linguagem e à necessária preparação prévia para uma palestra. Cuidados que contribuíram substancialmente para a minha vida profissional. Esse indivíduo fantástico também é outro daqueles que tenho a honra de ter entre meus amigos.

Muitas professoras de Português me ajudaram a escrever a história da minha vida e a Márcia Aparecida foi uma delas. Além de estimular meu gosto pelo teatro, abriu meus olhos para a importância de nos valorizarmos enquanto seres humanos e jamais nos inferiorizarmos em razão de condição socioeconômica desfavorável: “Deixa de ser bobo. As pessoas não valem só pelo que têm no bolso. O caráter e os valores que temos, quem somos...é o que realmente importa”. Essa fala foi fundamental para o início de um namoro que tive com uma menina de família “rica”. Não deu certo, mas as palavras ficaram gravadas na minha alma.

Infelizmente, muitos mestres que me “doutrinaram” já foram recrutados pelo Grande Arquiteto do Universo. Deus levou, por exemplo, meu grande amigo João Wilson. Pessoa de coração enorme e que sempre falava conosco, ainda infantes na época, sobre a importância do amor em nossas vidas: “Ter uma pessoa que te ama, que é sua companheira e compartilha suas alegrias e tristezas, é uma bênção de Deus. Amor não se confunde com paixão. Aprendam a diferenciar e retribuir e serão felizes”. Que o meu muito obrigado por essa catequese o encontre no céu!

Professor Ítalo (in memoriam) também não me sai da cabeça. Era um “baixinho invocado” à frente da disciplina de Biologia. Suas lições sobre respeitar a ciência e, principalmente, como as vacinas eram importantes para a humanidade estão mais atuais que nunca.

As mensagens do mestre Sílvio (Química) a respeito de Deus e como a fé era importante para termos um futuro melhor continuam símbolo de esperança em dias melhores. Não me esqueço que um dia, passando em frente da sua casa, no bairro Grande Horizonte, ele me convidou junto com dois amigos para comermos um pedaço de bolo com sua família, que estava sentada na varanda. Como aquela conversa marcou a nossa vida. Doutrinação desse professor, que também já foi para os braços de Deus? Com certeza! Mas para uma vida honesta, sobre a importância do trabalho e de valores como a família para alcançarmos a felicidade.

        Enfim, é muito triste ver o desrespeito com que a sociedade brasileira tem tratado seus professores. Nega a eles o reconhecimento. Atribui a esses profissionais a responsabilidade por uma política suja e pela distorção de valores que o próprio povo brasileiro há décadas vem renegando em nome da comodidade de transferir para os outros a culpa pela realidade que o incomoda, mas que não está disposto a mudar.

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