FALANDO SÉRIO

Em busca de repouso nos lares cercados

QUANDO a noite cai, as famílias, cansadas da labuta diária, se recolhem em busca ...

Wellington Cardoso
Publicado em 28/11/2011 às 10:17Atualizado em 16/12/2022 às 05:46
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Cidade nas sombras

QUANDO a noite cai, as famílias, cansadas da labuta diária, se recolhem em busca de repouso aos lares cercados por muros altos e cercas elétricas. Gradativamente, as ruas vão sendo tragadas pela escuridão e o silêncio. Mas, nem todas. À medida que as horas avançam, surge outra cidade, a Uberaba ignorada pela maioria dos seus cidadãos: a que vive nas sombras.  UMA cidade paralela formada por pequenas áreas que tiram o sossego dos bairros, comercializam desgraças, infelicidades, prazeres mentirosos e têm o cheiro da morte. É a “cidade” que atrai milhares de jovens, sedutora, em que nada é proibido. Só não vale não pagar as dívidas contraídas com os prazeres proibidos, que fingem libertar, mas escravizam. “Cidade” que faz a fortuna de uns poucos, a desgraça de muitos e acelera o surgimento de zumbis, que, como sombras, perambulam por ela, tentando esconderem-se da própria vergonha.   É NESSA “cidade”, com suas próprias regras, corpo de segurança truculento e tribunal inflexível, que os jovens mergulham de cabeça, vendendo a alma.   ALI, eles se transformam. Esquecem as famílias e são adotados pelo tráfico, esquecem as namoradas e dormem com homossexuais e prostitutas do baixo meretrício, tão infelizes quanto eles, e que sugam o pouco de vida que lhes resta, numa troca de energias negativas, alimentadas em especial pelo crack.   BECOS e vielas que durante o dia se mostram completamente inofensivos, de moradores dignos de dó pelas precárias condições em que parecem viver, transformam-se em endereços conhecidos por quem jamais pensou ou quer viver ali (morrer, talvez). Endereços avidamente procurados e nos quais esses jovens circulam e até passam horas curtindo a sua falsa liberdade, que, em verdade, os escraviza.   APESAR do movimento criado por esse exército de zumbis - formado por dependentes químicos, homossexuais e prostitutas dominados pelo tráfico - tudo nas ruas é sombra. Quando chegam, normalmente usando boné e envergonhados por ali estarem, às centenas, diariamente, esses jovens deslizam na penumbra como se fossem marginais à espreita de vítimas, quando são as próprias.   ALGUNS se entregam às drogas nos próprios pontos, esparramados em sofás imundos, num ambiente em que se misturam os diferentes cheiros (fedor, em verdade) inconfundíveis da maconha e do crack, e ainda dos corpos sujos, suados. Aos poucos, esses jovens vão se “soltando” e muitos ali amanhecem, enquanto outros procuram motéis para “curtirem” o prazer ao lado de homossexuais e prostitutas recrutados em vias públicas.   NÃO há nenhuma garantia de que a camisinha faça parte desse jogo. Afinal, quem está preocupado com doença sexualmente transmissível quando a vida está naturalmente exposta e sendo consumida aos poucos pelo crack, a cocaína e outras drogas? Sob o domínio da droga, cujo efeito não fica apenas no prazer, muitos até procuram o auto-extermino sem ter a coragem de praticá-lo. Adotam outros métodos, atraindo e voluntariamente se expondo a situações de risco.   PAIS, desesperados, circulam impotentes por essas mesmas vielas e becos à procura dos filhos. Quase todos conhecem as “bocas” que eles frequentam, depois de alguns anos de sofrimento. A busca é quase sempre infrutífera.   E TODAS às vezes é assim. O pai sabe que não conseguirá localizar os filhos, por mais que conheça as “bocas”, mas, desassossegado, insiste em procurá-lo. Uma busca inútil, que o deixa ainda mais assustado com as cenas que presencia em tempo real na cidade que vive nas sombras.   EXISTEM pais que têm “conta” ou crédito disponível nesses motéis, no desespero de evitar que os filhos drogados sejam vítimas de outras desgraças. Como consolo, sabem que eles estão abrigados. Pode parecer um contra-senso, mas não vale a censura de quem nunca perdeu (para a sua felicidade, que ignora) uma noite de sono em espera que parece interminável. A noite para pais de dependentes químicos parece eterna. O dia teima em não surgir.   MUITOS outros são acordados do seu sono/pesadelo por um “mala qualquer”, do outro lado da linha, dizendo que o filho está “refém” de traficante e somente será “libertado” se a dívida for paga. Os valores normalmente não são altos, mas a tática se repete rotineiramente. E não muito raro, a cobrança resulta de um conluio entre dependente e traficante. Ninguém é refém, mas o dinheiro precisa aparecer. O desejo pela droga é maior do que o amor pela família (e por si mesmo) para quem está dominado pelo vício.   E QUEM ousa recorrer à polícia? Que pai se arrisca a viver com o espancamento ou a morte de um filho lhe pesando na consciência? Traficante e dependente sabem aproveitar dessa fragilidade. E, em verdade, o submundo é cruel, desumano. A vida de dependente químico vale menos que uma pedra de crack. Entre as ameaças fictícias e as reais, muitas delas cumpridas literalmente, há de tudo um pouco.   A RAIVA e as aflições de muitos pais, as promessas de que, “agora, quando ele reaparecer, as coisas vão ser diferentes”, são gradativamente substituídas pelo alívio da manhã que chega trazendo o filho de volta (mas não a salvo, pois as drogas estão minando suas energias, comendo-o aos poucos, corroendo suas entranhas e sua alma). Sermões e promessas são renovados.   E QUANDO não existem outras questões envolvidas, como agressões físicas e verbais, discussões diárias, a angústia causada pela dependência não termina, mas a raiva passa e tudo volta à aparente normalidade, com as esperanças igualmente renovadas. E assim segue até que esse jovem mergulhe outra vez na cidade que vive (e mata) nas sombras, em um círculo vicioso interminável.

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