François Silva Ramos - Jornalista, advogado, pedagogo e professor universitário.
Minha adolescência e juventude foram repletas de experiências vivenciadas nas ruas de bairros como Tutunas, Santa Marta, Grande Horizonte e Pontal. Aquele final dos anos 1980 até meados dos anos 1990 foram fundamentais para a construção da minha identidade. Lembro com carinho desse período marcado por menos responsabilidades, mais alegrias e muitos amigos.
Naquela época eu morava na avenida Alfredo de Faria, em uma casa muito simples que fazia divisa com o Cemitério São João Batista. Foram os melhores vizinhos que tive na vida, pois nunca me deram qualquer contrariedade. Aliás, aprendi cedo pelas lições da minha saudosa mãe/vó Mariinha que devia temer os vivos, pois estes sim eram capazes de atrocidades que seriam impossíveis de se imaginar.
Impossíveis mesmo, pois nos anos 80 e 90 as ruas dos bairros Tutunas, Santa Marta e Grande Horizonte, onde eu mais circulava com os amigos, eram seguras independente do horário. Pela madrugada quando encontrávamos algum usuário de drogas ilícitas (o que era muito raro, principalmente entre os pobres) parávamos para bater papo. Não havia perigo de assalto ou outras formas de violência, pois na verdade eram pessoas conhecidas e que trabalhavam para sustentar “seu barato”, não dependiam do dinheiro “alheio”.
Na realidade lembro-me de uns quatro caras que curtiam essa “vida loka” e todos eram pessoas muito bacanas, que jogavam bola com a gente, frequentavam a mesma escola e por vezes até tiravam a gente de alguma encrenca com valentões do bairro (sim... esses sempre existiram). Nenhum deles me ofereceu drogas e todos disseram que era uma porcaria, pra jamais me aproximar: um conselho que segui por toda minha vida.
Na avenida Alfredo de Faria havia uma frondosa árvore sibipiruna que eu adorava subir para “espiar” o movimento da rua e gritar pelos amigos pra gente bater uma bola no campo de terra que havia naquele mesmo quarteirão. A pelota era normalmente um “capotão” rejeitado pelos atletas amadores do Tutunas, mas que estimulava a imaginação de quem sonhava em ser Zico, Cerezo e até mesmo Pelé ou Garrincha. O combustível do sonho não era ganhar dinheiro com futebol, mas sim se divertir e adquirir o respeito dos colegas de racha (no meu caso não ser o último escolhido para o time).
Não havia exclusão na brincadeira, os dois melhores “atletas” escolhiam os times e os menos habilidosos também participavam da pelada. Tinha zoeira, puxão de orelha, golaço, carrinho, falta e de vez em quando até uma briga. A peleja era rapidamente sufocada pelos demais e ninguém perdia a amizade ou ficava traumatizado por isso. Voltava pro campo e minutos depois um já tinha pedido desculpas ao outro e estava tudo certo.
Vez por outra, especialmente no inverno, fazíamos uma fogueira no terreno em frente ao local em que um prédio da Cemig estava sendo construído. A roda calorosa garantia a presença de muita gente para conversas que adentravam pela madrugada. Adultos, jovens, crianças, todos compartilhavam o fogo e cuidavam uns dos outros até a hora de entrar pra casa.
Esses e outros motivos me deram a certeza de que a vida na minha juventude, mesmo privada de recursos materiais, como acontece hoje em qualquer família assalariada, foi maravilhosa.
No quintal da minha humilde casinha pousavam pardais, periquitos, canários, sabiás e vez por outra até pássaro preto em busca de comida. A hortaliça, sempre com xuxu, chicória e couve asseguravam a visita das borboletas. Até a umidade gerada pela oficina do meu avô, seu Mozart (pintor de carros), e pela horta rendiam frutos. Falou em pescar, a molecada passava por lá e a gente com algumas enxadadas enchia o litro de minhoca.
Na descida para o rio cortávamos o Jardim Uberaba, que início dos anos 90 tinha só uma meia dúzia de casas. Pelo caminho nos fazia companhia o canto do tiziu. As pombinhas, as tesourinhas e os anus também integravam a paisagem. De vez em quando as pobres aves tinham que fugir de um guri com estilingue que insistia em cozinhar os pobrezinhos.
A pescaria no máximo rendia alguns lambaris que acabavam indo parar num “aquário” improvisado porque não davam uma fritada, mas como era bom nadar e fazer farra com os amigos.
As quermesses da Capela de São José, no Tutunas, e da Paróquia da Ressurreição, no Santa Marta, rendiam muitos corações apaixonados nos anos 90. Amores que acabavam por impulsionar também os Grupos de Jovens “Vida” (participei por 4 anos) e “Stelium” (acho que era esse o nome). Ali, num contexto de namoros que se consolidavam e casamentos que não aconteceriam, adquiri o melhor patrimônio que eu poderia acumular na época: amigos verdadeiros. Alguns presentes ainda hoje em minha vida.
Hoje sou umbandista e continuo a frequentar a igreja católica, o centro espírita, etc. Onde Deus está presente gosto de ir, pois me lembro com clareza das lições dos padres Prata (Tutunas) e Bartolomeu Bravo (Santa Marta) alertando os então jovens para o período que estaria porvir: Como a vida se tornaria mais complexa, nossos questionamentos mais profundos e os desejos mais difíceis de satisfazer. Contudo, havia sempre uma força capaz de nos ajudar a enfrentar tud a tríade Deus, Família e Amigos.
Uma pena que o mundo de hoje não proporcionará à minha filha toda a riqueza que me emprestou e na época nem percebi. Porém, com ela posso compartilhar minhas histórias, exemplos e muito amor. Que a vida possa ser para a minha criança a dádiva que Deus planejou.
Que a nossa luta possa ser sempre por mais amor, felicidade e união em nossos lares!