ARTICULISTAS

Consulta não envelhece

Tem gente que ainda me pergunta: depois do oitenta anos, porque você ainda vem todas as manhãs aqui no consultório?

João Gilberto Rodrigues da Cunha
Publicado em 08/02/2012 às 08:47Atualizado em 17/12/2022 às 08:13
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Tem gente que ainda me pergunta: depois do oitenta anos, porque você ainda vem todas as manhãs aqui no consultório? Aí eu pens será por curiosidade? Será alguma recordação de um alguém seu que eu pude ajudar? Ou por alguma decepção com outros médicos e suas consultas, onde cinco minutos de conversa são logo acompanhadas de dez exames laboratoriais ou a consulta e exame de um colega do grupo? Em qualquer caso fico firme, escutando o doente - e com frequência seu ou sua acompanhante informando, completando - e frequentemente desviando ou contradizendo a fala do doente. Às vezes, queimo meu estopim, que já é curt “dona fulana, dá pra ficar calada e deixar o seu Anibal falar?” As reações seguidas são curiosas: a comadre pode ficar magoada comigo, emburra, o Anibal vai falando assim meio sem graça, ela só sacode a cabeça negativamente. Aliás, negativa para tudo, pra doença e informações do seu Anibal, pra história de sua vida, até as coisas ou dores que ele veio consultar. Eu entro com uma colher de chá: a senhora, que vive com ele, na tristeza, na doença ou na alegria - o que acha dele e sua doença? Aí ela desabafa toda a criminologia do seu doente, muitas vezes sem nada a ver com o Anibal, que no final ficaria sem o seu diagnóstico - mas sim com a chatura dele e de seus colegas e amigos. Às vezes, ela baixa o cacete nos médicos anteriores, que não lhe deram atenção e a seu ver são culpados dele não se curar. Aponto as coisas curtas que me parecem importantes, o discurso longo é apenas vazamento de ideias e diagnósticos pessoais. Aliás, que alegria tem uma acompanhante chata quando eu lhe dedic é, pode ser, a senhora pode ter razão - e levo o Anibal para o exame clínico pessoal. Sigo uma rotina habitual e rápida. O Anibal tem uma dor na barriga, mas eu lhe escuto pulmões, coração, reflexos... e só no final chego ao abdome, aí com mãos de donzela. Neste intervalo físico vou conversando; doentes têm por vezes um diálogo e informações que vale muito apontar na ficha - aliás, sou dos atrasados que não usam computador. Só depois vou olhar os exames que trás - alguns sem nenhuma relação com a clínica, outros com grande e por vezes definitivos no diagnóstico. Voltamos às cadeiras, não acabou: dou-lhe a minha opinião, mas, sobretudo, falo muito - às vezes, demais. São os casos de influência psicossomática, e nesta altura eles abrem o jogo – a filha querida fugiu de casa com um vagabundo; o filho foi preso fumando seu crack com os amigos; o vizinho é surdo e põe a TV no máximo; além da motocicleta mais barulhenta da cidade... etc, etc. Isto também vale, e muitas vezes é necessário. A dona informante se empolga, criamos intimidade, ela já me pergunta sorrateiramente: doutor, homem brocha tem cura? Bem, são mil casos no meio das 80.000 fichas que tenho - e pouco papel. Porém, e lá pelo começo da crônica, vocês vão entender o ainda velho, porém novo sempre curioso. E, com minha frase sempre escrita ao final da consulta: puro gesso! Todos - e vocês lerão errad a frase traduzida é “por hoje é só”!

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