Ela, desde pequenininha, sonhava com o seu príncipe e ele com a sua princesa. Coube ao destino, aliado ao tempo, propiciar o seu encontro que só foi possível porque superaram as deficiências do sistema de saúde, dos atendimentos médicos. Caminharam, estudaram e se conheceram nesses encontros encomendados pelo tempo que às vezes dão certo. Ela, magrinha de cabelos encaracolados, filha não única, mas de criação única, sonhava em querer ser o quer é. Ele, menino homem, gentil e de jeito acolhedor. Viram-se e não se largaram mais. Nada havia que pudesse estremecê-los, distanciá-los. Havia uma convergência de tolerância entre eles ao ponto de se permitirem aos encontros com os amigos durante a semana de forma separada. Era um acasalamento descasalado. O pai sempre aparecia em casa com uma novidade. Naquele dia foi uma cadela poodle que ele havia adquirido. Não se sabe até hoje se foi por compulsão consumerista ou por amor à primeira vista. Cadela linda, branquinha, de focinho gelado, sempre a mirar um caminho a seguir. Embora fosse, em tese, o dono da cadela, ela, no entanto, se apegou ao filho. Evódio, o predileto, cuidava dela mais por solidariedade do que por opção obrigacional indireta. Quando Fátima chegava à casa do namorado, a cadela não dava sinais de proximidade. Rosnava para dentro até ter refluxos, mas era sempre socorrida com presentes. Fátima, muito carinhosa com Evódio, cuidava da cadela para deixá-lo convicto de que não havia impedimentos seus à presença de animais de estimação. Ela era assim não porque tinha gato, que sempre ronronava quando ele aparecia em sua casa, mas por zelo ao relacionamento. Gato tem hábito de se esfregar em pernas alheias, para se aproximar e depois arranhar. Diferentemente do cachorro. A cadela era apegada a Evódio. Quando Fátima foi vê-lo no quarto, a cadela apareceu no momento em que ela fechou a porta. Arranhava e rosnava atrás da porta. Chorava e arranhava a porta. O ruído se tornava insuportável e sempre acabavam cedendo à sua entrada. O enredo tornou-se recorrente e constante quando ela chegava à casa dele. Fátima expressava seu descontentamento com aquela cadela, que tinha ares de ciúmes, mas sem constranger Evódio. Um absurdo do mundo a se acasalar com eles. Aquela noite foi o exagero. A cadela teve convulsão sob a cama. Ao entrar no quarto, encontrou Evódio e Fátima em carícias insuportáveis para ela. O tratamento tornou-se iminente. Gardenal e lexotan tornaram-se recorrentes. O amor expresso em corpos suados sobre a cama, enquanto sob a cama os ataques epilétipcos e batidas de cabeça eram constantes, como se um ritmo combativo do mundo animal pudesse combater aquele amor. Casaram-se e, no outro dia, ao sair de viagem, deixaram que a família enterrasse aquela que talvez tenha sido a cadela mais amorosa, porém, acabou sendo envenenada de forma irreversível pelo seu próprio ciúme.