Estacionei na rua José de Alencar. Logo se aproximou de mim um guardinha. Um não, uma. Gordinha, “da cor do azeviche”, uma carinha redonda e olhos tristes. Doze anos? Quinze? “Meu bem, você é muito novinha para ficar aqui nesse sol quente”. Ela baixou os olhos, entregou-me a papeleta e o preç um real. Como não tinha troco, dei-lhe uns caraminguás a mais: “é para você comprar um sorvete”. Ela olhou-me com doçura e pediu: “Moço, o senhor quer ser meu avô?” Perguntei, surpres “Não estou entendendo”. E ela: “É porque só tenho mãe. Meu pai bebia muito e largou ela”. “Mas como posso ser seu avô?” Explicou, como se fosse uma súplica: “Eu moro lá no Residencial 2. De vez em quando o senhor vai lá me ver e ver minha mãe, ela faz café pro senhor”.
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A professora propôs aos alunos (turma de 5 e 6 anos): “Vocês agora vão me dizer, um de cada vez, de que é que vocês têm mais medo.” As respostas foram as mais variadas: de palhaço, de sapo, de aranha, de monstro, de lobisomem e assim por diante. Só faltava um para responder. Estava calado, de cabeça baixa. “E você, aí tão quietinho, de que você tem mais medo?” A resposta veio bem baixinha: “Eu tenho medo é do Malamém”. A professora: “Não entendi, filho, você pode me explicar?” Olhando para os lados, veio a explicaçã “Todas as noites a mamãe me chama para rezar. Tem uma hora, quando ela reza o Pai Nosso, que ela diz: “Mas livrai-nos do Malamém. Eu tenho medo dele aparecer pra mim.”
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Na ocasião, eu era pároco da Catedral. Numa das laterais da Igreja, havia uma imensa imagem do Arcanjo Gabriel (não sei se ainda está lá, é horrorosa). O Grande Mensageiro, munido de uma espada enorme, sangrava um demônio sobre o qual pisava.
Ao passar por perto, alguém me chamou. Era uma criança de uns oito anos, se tanto. Apontou para a imagem e perguntou: “Moço, por que esse
homem vestido de borboleta está enfiando essa vara nesse homem de chifre?” Pego assim de surpresa, nem sei mais o que respondi. Como explicar que um era um anjo e o outro era o demônio? Aquela criança era incapaz de entender uma linguagem simbólica, muito menos um mito. Se tentei explicar, aquela criança não deve ter entendido nada.
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Agora você entende por que Jesus disse que só aqueles “que têm coração de criança entrarão no Reino de Deus”?